Houve um tempo em que o coração comercial do Rio batia a poucos passos da Praça XV, onde o mar encostava mais perto e os navios traziam nĂŁo apenas mercadorias, mas histĂłrias. Ali, o Mercado Municipal erguia-se como um organismo vivo, pulsante, desses que misturam cheiro, cor e vozes num mesmo caldo — um caldo tĂŁo forte que, dizem, impregnava a roupa de quem apenas atravessasse seus corredores.
Era cedo quando a cidade chegava inteira ali. Nas bancas, amontoavam-se frutas que pareciam inventadas pela luz: mangas douradas, abacaxis perfumados, melancias que prometiam quebrar a sede de qualquer alma cansada. Mas havia tambĂ©m produtos vindos de tĂŁo longe que pareciam contrabandear universos: queijos portugueses embrulhados em panos Ășmidos, bacalhau empilhado como pedras de um castelo antigo, temperos ĂĄrabes que deixavam no ar um sopro de deserto. Da França vinham perfumes que ninguĂ©m comprava, mas todos cheiravam. Da Ăfrica, tecidos que pareciam conversar com o vento. Da Ăsia, porcelanas com desenhos tĂŁo delicados quanto um pensamento bonito.
E no meio dessa geografia que se dobrava inteira dentro do mercado, surgiam personagens que, de tĂŁo marcantes, pareciam fazer parte da arquitetura. O velho Lourenço, por exemplo, pescador aposentado, que chegava todos os dias para conversar com quem quisesse ouvir — Ă s vezes atĂ© com quem nĂŁo queria. Contava histĂłrias da BaĂa de Guanabara antes da pressa, dos peixes que, segundo ele, saltavam sozinhos para o barco “por amizade”.
Havia tambĂ©m Dona Rubina, a rainha das especiarias, capaz de adivinhar o temperamento de uma pessoa sĂł pelo aroma que ela buscava. “Quem procura canela tem poesia guardada”, dizia, enquanto pesava pacotinhos com a delicadeza de quem pesa sonhos.
NĂŁo faltavam acontecimentos marcantes. Houve o dia em que um navio atracou trazendo laranjas gigantes, quase mitolĂłgicas. A cidade inteira correu para ver. Houve o susto de um pequeno incĂȘndio num dos galpĂ”es, que por milagre foi contido sem maiores danos — e que uniu feirantes como uma famĂlia improvisada. Houve visitas ilustres: polĂticos, escritores, artistas que vinham observar “a alma da cidade” concentrada ali. Dizem que Machado de Assis gostava de caminhar silenciosamente entre as bancas, recolhendo gestos, frases, olhares — matĂ©ria-prima eterna de suas criaçÔes.
Mas, acima de tudo, o Mercado era um ponto de encontro. Gente de todos os cantos, de todas as posses e de todos os humores cruzava-se ali, numa coreografia desordenada que só o Rio saberia inventar. E talvez por isso, quando o mercado finalmente desapareceu do mapa, permaneceu no coração: não como um prédio perdido, mas como uma memória que insiste em viver em cada esquina onde o comércio popular ainda resiste.
Afinal, certos lugares nĂŁo sĂŁo feitos de paredes, e sim de encontros — e desses o velho mercado tinha de sobra.
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__ crÎnica histórica-ficcional inédita.
đ Esse texto estĂĄ na minha PĂĄgina de escritor. Sua participação me ajuda, clique no post original, siga, curta e comente lĂĄ — isso me ajuda muito a continuar escrevendo đ.
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__ Todos os livros disponĂveis em e-book e impresso.
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Houve um tempo em que o coração comercial do Rio batia a poucos passos da Praça XV, onde o mar encostava mais perto e os navios traziam nĂŁo apenas mercadorias, mas histĂłrias. Ali, o Mercado Municipal erguia-se como um organismo vivo, pulsante, desses que misturam cheiro, cor e vozes num mesmo caldo — um caldo tĂŁo forte que, dizem, impregnava a roupa de quem apenas atravessasse seus corredores.
Era cedo quando a cidade chegava inteira ali. Nas bancas, amontoavam-se frutas que pareciam inventadas pela luz: mangas douradas, abacaxis perfumados, melancias que prometiam quebrar a sede de qualquer alma cansada. Mas havia tambĂ©m produtos vindos de tĂŁo longe que pareciam contrabandear universos: queijos portugueses embrulhados em panos Ășmidos, bacalhau empilhado como pedras de um castelo antigo, temperos ĂĄrabes que deixavam no ar um sopro de deserto. Da França vinham perfumes que ninguĂ©m comprava, mas todos cheiravam. Da Ăfrica, tecidos que pareciam conversar com o vento. Da Ăsia, porcelanas com desenhos tĂŁo delicados quanto um pensamento bonito.
E no meio dessa geografia que se dobrava inteira dentro do mercado, surgiam personagens que, de tĂŁo marcantes, pareciam fazer parte da arquitetura. O velho Lourenço, por exemplo, pescador aposentado, que chegava todos os dias para conversar com quem quisesse ouvir — Ă s vezes atĂ© com quem nĂŁo queria. Contava histĂłrias da BaĂa de Guanabara antes da pressa, dos peixes que, segundo ele, saltavam sozinhos para o barco “por amizade”.
Havia tambĂ©m Dona Rubina, a rainha das especiarias, capaz de adivinhar o temperamento de uma pessoa sĂł pelo aroma que ela buscava. “Quem procura canela tem poesia guardada”, dizia, enquanto pesava pacotinhos com a delicadeza de quem pesa sonhos.
NĂŁo faltavam acontecimentos marcantes. Houve o dia em que um navio atracou trazendo laranjas gigantes, quase mitolĂłgicas. A cidade inteira correu para ver. Houve o susto de um pequeno incĂȘndio num dos galpĂ”es, que por milagre foi contido sem maiores danos — e que uniu feirantes como uma famĂlia improvisada. Houve visitas ilustres: polĂticos, escritores, artistas que vinham observar “a alma da cidade” concentrada ali. Dizem que Machado de Assis gostava de caminhar silenciosamente entre as bancas, recolhendo gestos, frases, olhares — matĂ©ria-prima eterna de suas criaçÔes.
Mas, acima de tudo, o Mercado era um ponto de encontro. Gente de todos os cantos, de todas as posses e de todos os humores cruzava-se ali, numa coreografia desordenada que só o Rio saberia inventar. E talvez por isso, quando o mercado finalmente desapareceu do mapa, permaneceu no coração: não como um prédio perdido, mas como uma memória que insiste em viver em cada esquina onde o comércio popular ainda resiste.
Afinal, certos lugares nĂŁo sĂŁo feitos de paredes, e sim de encontros — e desses o velho mercado tinha de sobra.
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