sábado, 18 de maio de 2024

Ainda sobre mães

Todas as outras
 muito bem representadas

    A gente as carrega conosco. Zoada bendita, as palavras de ordem, as broncas oportuníssimas, as cobranças das tarefas de escola. Ah, meu bom Deus, que não chegasse nenhuma reclamação.

   Eu tinha uma merendeira amarela. Oh, como foi custoso adquirir uma, porque as finanças eram todas contadas. Merendeira seria um luxo. Era mesmo o saco plástico, com a merenda embrulhada em papel de pão, aquele mesmo, acinzentado.

   Cid Mauro!!!!! Ouvi o grito solene, ainda na casa de Cascadura, Rua Mendes de Aguiar 90, ap 101. Dorcas, minha mãe, com uma nota de 5 mil cruzeiros, aquela mesmo do Tiradentes, perguntando como foi parar dentro da merendeira amarela.

   Tive que mentir. Mãe, é que o colega deixou largada na mesa dele, ora, ia perder. Então eu guardei. Sabe o nome disso, Cid Mauro, no mesmo tom solene: é roubo.

   Não, mãe! Eu bradei. Jamais. E a mãe entrou com a lógica dela. Vocês lembram da lógica das mães? Muitas vezes, confessemos, vinha acompanhada de chinelos, beliscões, puxões de orelha. Mas era totalmente convincente.

   Ela disse: O seu colega viu você pegar? Ele sabe que está com você? Hora dessas, com a mãe perguntando onde está o dinheiro, ele vai saber dizer? Você vai agora se ajoelhar, pedir perdão a Deus, e amanhã vamos devolver esse dinheiro ao colega.

   Estamos em 1963. Morando em Cascadura, ela estudando o Curso Normal no Colégio Nilopolitano e eu o Jardim de Infância, no Instituto Filgueiras, o velho, porque o novo ficava defronte à linha do trem, na avenida principal.

   Coisa de criança, comentou rindo a mãe do coleguinha, quando recebeu de volta a nota do Tiradentes. Não, disse Dorcas. Já conversei com ele, para nunca mais fazer isso. Dessa idade que se aprende.

   Cada um de nós tem histórias dessas para contar. E a essa altura de vida, se quando pedimos perdão por pecados, são faltas leves, vamos agradecer a essa educação. Modelo infalível. Didática renomada.

   Eram assim as mães dessa família. Talvez, possamos dizer, dessa época. As de nossa família ainda tinham, por detrás, como código de ética regente, o temor a Deus.

   Podem ter sido diferentes no temperamento, mas não na têmpera. Mais ou menos presentes, fisicamente, nas igrejas, mas ainda mais notável era carregar a igreja dentro de si.

   A imagem bíblica que eu acho a mais linda de igreja é a congregação do 🏜 deserto, no Antigo Testamento. Armavam e desarmavam suas tendas enquanto peregrinavam.

   E havia um tabernáculo, uma tenda imensa, no meio do arraial, simbolizando a presença de Deus. Mas era uma tenda vazia. Com símbolos do que cada um tinha em sua própria tenda: bacia de lavar, mesa, pão, candelabro e um baú de guardar coisas.

   Na tenda que foi nossa casa, onde moramos com nossa mãe, quando nos acordava à noite, eu dizia assim: desliga a luz. Mas era tosse. Vinha um xarope (lambedor, diz o acreano). Eu tomava e, ao lado, Cid, meu pai, orava, para a tosse e a febre irem embora.

    Essa ideia da tenda ao redor de uma tenda maior vazia, era para ensinar ao povo que carregassem Deus consigo dentro. Armem e desarmem a igreja que vocês têm dentro, porque é dentro onde Deus quer morar.

   A tenda que era nossa casa, era o refúgio de proteção, onde a mãe reinava. Se temos, hoje, esse esboço de família, foi lá o nosso referencial. Não. Nunca quisemos pais infalíveis: seriam fake. Eles tinham os defeitos que hoje também temos. E as virtudes que nos transmitiram com seu exemplo.

   As mães dessa família, mais ou menos igrejeiras, aprenderam, entre si, amar. Havia uma intuição dentro delas. E intuição é como fé, basta uma do tamanho de um grão de mostarda, a menor das sementes de hortaliças.

   Essa intuição as guiava. Com ela, o alarme sempre acusou o perigo. E elas cumpriram seu papel, sem que fossem soberbas, mas foram altaneiras. O que falta dizer sobre elas, já bisavós dos netos de seus filhos?

   O que dizer das que já foram, deixando bruta saudade, mas com certeza de que cumpriram honrosamente o seu papel. Ora, isso é lugar comum, chover no molhado, ser repetitivo.

   Mas é esse o maior tesouro que herdamos, ou seja, ter sido simplesmente mães, as mais comuns de ser, o mais dedicado, o mais presente, sábias, enfim, amorosas.

   Gratos, mães da família. Vocês são sensacionais. Eunice trisavó, Eunice filha bisavó,  Dorcas-Maninha, Leila, Miriam e Gislaine bisavó. Francisca bisavó, Iracema, Zila. Acho que não esqueci ninguém.

  Há uma rede de amizades. Outra marca célebre dessa família foi granjear muitos amigos.  Em 1951, Cid noivo de Dorcas reencontrou o irmão dele, Isaías, materialista e membro da Juventude Comunista.

    Nunca mais esqueceu os cultos a que assistiu, na casa da Rua Osvaldo Cruz 306, equina com o morro da Dr. Rufino. Foi cativado por essa amizade e atraído por esses laços. Nunca esqueceu do sorriso de Baldomero, o Tula, e de sua acolhedora hospitalidade. Findou pastor, como diz o acreano.
  
     Há quem chega para se agregar, esses pais, esposos dessas mães. Trazem com eles suas famílias. Grande essa rede de gente. Assim como as cunhadas, também agregadas, trouxeram junto suas famílias. Haja tempo para se contar muitas outras histórias de amizades.

  Bom. Provinciano. Suburbano. Mas não pensem que deixei os pais, sim, os homens, para segundo plano. Porque têm as mesmas marcas de virtudes e defeitos das mães.

   Porém eu desconfio que, quanto mais, como a Bíblia, aconselha, encararam essas mães como auxiliadoras idôneas, deram-se bem. Porque, ora, para as sábias esposas, mais valia, sempre mais valeu, para eles, terem seguido os conselhos delas.

   Caramba, grande dívida de amor temos com as mulheres dessa família. 

5 mil merréis de uma bronca bem dada


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