"Provavelmente porque o dicionário não exprime ainda as revoluções metodológicas que tiveram lugar na linguística. Trata-se, muito simplesmente, da distinção entre duas formas de tratar uma palavra. Podemos perguntar o que ela significa na língua, ou procurar ainda saber o que são os objetos de que ela fala. Os nossos dicionários misturam as duas coisas. Falam das coisas nomeadas e também falam do lugar das palavras no sistema lexical de uma língua. Os nossos dicionários são uma espécie de compromisso entre, por um lado, uma verdadeira semântica das palavras, isto é, a ordenação de uma palavra em relação a todas as outras, sem se ocuparem das coisas em si e, por outro lado, a descrição das coisas correspondentes (RICOEUR, 1976, p. 3).
Sendo assim, os dicionários não substituem uma análise pormenorizada das coisas. Porém, eles são bons guias de ordenação e descrição das coisas. Em Percurso do reconhecimento, Ricoeur dá um excelente exemplo de como o dicionário pode ser utilizado por um filósofo. Em tal obra, este recurso não aparece como auxílio para resolver um dilema, como em A Memória, a História, o Esquecimento, mas como apresentação de um conceito problemático, a saber, o conceito de reconhecimento. Desta forma, o filósofo francês, em um primeiro momento, recorre aos dicionários, para, depois de tal esclarecimento, iniciar uma discussão através de grandes obras filosóficas. Sua justificativa para esta estratégia metodológica é de que este conceito nunca foi trabalhado de maneira central e, por consequência, esclarecido por nenhum grande autor."
Dois principais autores contemporâneos ocupam-se com definições do que seja hermenêutica. São ele o francês Paul Ricoeur (1913-2015) e o alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002). Essas respectivas definições variam entre os dois. Em Gadamer, um só conceito sobre hermenêutica percorre toda a sua obra. Em Ricoeur, à medida que com ele se caminha, há desdobramentos variáveis em sua definição.
O diálogo acadêmico entre os dois é quase inexistente, ou seja, não há citações de parte a parte, a não ser, talvez, Ricoeur mencionando Gadamer. Enquanto, para este a hermenêutica seria "uma disciplina do perguntar e do investigar, que garante a verdade" (GADAMER, 1997, p. 709), para o outro, esta seria apenas uma faceta da questão.
Em Ricoeur, pode-se presumir, pelo menos, três aspectos: (1) "métodos precisos que comportam regras rigorosas – é o caso da filologia e da exegese dos grandes textos clássicos, como a jurisprudência; em seguida, (2) uma reflexão sobre a própria natureza do próprio compreender, as suas condições e seu funcionamento; finalmente, (3) um eixo mais ambicioso, uma espécie de “filosofia” que se apresenta como outra via da inteligibilidade, e que pretende compreender as condutas cientificas melhor do que elas próprias conseguiram, acantonando-os nos limites de uma espécie de 'metodologismo'”.
Nesse sentido que será definido o dicionário como ferramenta essencial ao fazer filosófico que, precipuamente, terá, como tarefa mínima, analisar e classificar. O texto que precede este artigo, acima enunciado, indica os limites que o dicionário, como instrumento, apresenta. As palavras, portanto, teriam, nas línguas, duas funções: (1) o que elas significam em cada língua; (2) o que são os objetos de que ela fala. Ricoeur acusa, nos dicionários, uma mistura desses dois conceitos.
Ricoeur define um "percurso do reconhecimento", destacando que o dicionário "não substitui uma análise pormenorizada das coisas" (SOUZA, 2019). Dois dicionários franceses podem ser nomeados, um deles mais rigoroso em seus critérios lexicográfricos, o Littré, e outro mais coloquial em sua classificação das palavras, o Grand Robert. Seus equivalentes no contexto brasileiro, seriam o Aurélio, para a abordagem mais popular ou coloquial, e o Houaiss, para a mais rigorosa.
Para o Aurélio, hermenêutica apresenta três definições: (a) interpretação do sentido das palavras; (b) interpretação dos textos sagrados; (c) arte de interpretar leis. Neste aspecto, “hermenêutica” refere-se a "um sentido geral de interpretação, ou em um sentido instrumental, seja este para se referir a interpretação comum, como na primeira definição, ou seja este para interpretar textos sagrados ou leis, como na segunda definição, ou como uma arte, isto é, uma técnica, como apresenta a terceira definição" (SOUZA, 2019).
E com relação ao Houaiss, há quatro definições: (a) ciência, técnica que tem por objeto a interpretação de textos religiosos, ou filosóficos; (b) interpretação dos textos, dos sentidos das palavras; (c) teoria, ciência voltada à interpretação dos signos e do seu valor simbólico; (d) conjunto de regras e princípios usados na interpretação do texto legal (HOUAISS, VILLAR, 2009, p. 1014). Portanto em Houaiss, para mais do que em Aurélio, hermenêutica não é apenas interpretação, num sentido instrumental, mas também ciência/teoria.
Assim esquematizadas no quadro abaixo:
Um dos destaques apontados na reflexão deste artigo, é sobre a importância da linguagem na contemporaneidade:
"A linguagem se tornou, em nosso século, a questão central da filosofia. O estímulo para sua consideração surgiu a partir de diferentes problemáticas: na teoria do conhecimento, a crítica transcendental da razão, foi por sua vez, submetida a uma crítica e se transformou em “crítica do sentido” enquanto crítica da linguagem; a lógica se confrontou com o problema das linguagens artificiais e com a análise das linguagens naturais; a antropologia vai considerar a linguagem um produto especifico do ser humano e tematiza a correlação entre forma da linguagem e visão do mundo; a ética, questionada em sua racionalidade, vai partir da distinção fundamental entre sentenças declarativas e sentenças normativas. Com razão, se pode afirmar, com K. O. Apel, que a linguagem se transformou em interesse comum de todas as escolas e disciplinas filosóficas da atualidade (OLIVEIRA, 2006, p. 11).
Levando-se em conta a problemática dessa constatação, é que se caminha para uma definição mais precisa e abrangente de hermenêutica, que seria: “Por hermenêutica entenderemos sempre a teoria das regras que presidem a uma exegese, isto é, a interpretação de um texto singular ou de um conjunto de signos suscetível de ser considerado um texto” (RICOEUR, 1977, p. 19, grifo do autor).
Ricoeur aponta três crises na modernidade: (1) da linguagem; (2) da interpretação; e (3) da reflexão. Na crise da linguagem, "a linguagem natural é transformada pela univocidade da linguagem artificial, eliminando a pluralidade da linguagem simbólica"; na da interpretação, seria "a falta de consideração das interpretações possíveis e, até mesmo, concorrentes"; e na da reflexão, "que é o esquecimento de nossas raízes, que pode nos levar ao niilismo."
O próprio Ricoeur é quem afirma: "Toda interpretação se propõe a vencer um afastamento, uma distância, entre a época cultural revoluta, à qual pertence o texto, o exegeta pode apropriar-se do sentido: de estranho, pretende torná-lo próprio; quer dizer, fazê-lo seu. Portanto, o que ele persegue através da compreensão do outro, é a ampliação da própria compreensão de si mesmo. Assim, toda hermenêutica é, explícita ou implicitamente, compreensão de si mesmo mediante a compreensão do outro (RICOEUR, 1978, p. 18)."
Dessa forma, envolvendo, na concepção de sua hermenêutica, interpretação, método e reflexão, sendo este o conceito que melhor resume seu pensamento filosófico, e a reflexão constituindo-se no marcante diferencial de distinção em relação aos demais autores de seu tempo, cuja síntese de sua ideia seria: "a melhor maneira de se conhecer é através de algo que é método que possibilita encontrar um si por meio da interpretação de um outro. Ou seja, entre outras coisas, hermenêutica para Paul Ricoeur é o lugar da investigação do si-mesmo como outro".
Referências:
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