Escrituras e seu descrédito
Houve tempo em que se lia a Bíblia e se avaliava que a mensagem era direta, clara e segura.
Aliás, um dos trunfos maiores da Reforma foi ter posto a Bíblia ao alcance do vulgo, ou seja, dos menores no reino, como diz Jesus.
Para esses foi escrita. E para quem, ao lhes ouvir as palavras, buscava entrar nesse reino anunciado por Jesus.
E a função primária da Bíblia é essa. Sempre foi. Pôr verdades seguras, diretas a claras ao alcance do menor, com a maior facilidade possível de se compreender.
Mas entram um monte de mãos nessa receita. E quando muitas mãos e muito palpite, ainda que autoeruditos, atravessam esse samba, contribuem, como corolário final, para o descrédito das Escrituras.
Em primeiro lugar, elas, as Escrituras, falam do maravilhoso, do miraculoso, daquilo que somente é possível para Deus. Ela começa dizendo "No princípio, Deus", Gn 1,1 e, quando acrescenta a essa história a revelação de Jesus, confirma-o com a afirmação:
"²² Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós mesmos sabeis", At 2.
Pois a visão contemporânea das Escrituras afirma que os milagres indicados no texto, sejam os vários deles dispersos pelo Antigo Testamento, sejam os detalhadamente descritos no Novo Testamento são impossíveis, ou de ser realizados ou, numa amenidade da argumentação, impossíveis de, historicamente, ser confirmados.
O segundo, na economia deste texto, argumento desqualificante das certezas das Escrituras refere-se à tradição dos manuscritos.
Desde o fato de se dizer, empiricamente, que o papel aceita qualquer coisa, a se dizer que não são, suficientemente, antigos ou que nem os autores estão confirmados, quanto, e, talvez, principalmente, porque o que escrevem não tem suficiente credibilidade.
Não está confirmado que Abraão existiu, em Ur dos Caldeus, ou que peregrinou, pelo crescente fértil, até Canaã. Não se garante, historicamente, que Isaac, Jacó e estes filhos e netos tenham sido personagens históricos.
José do Egito, em que dinastia? Moisés, 400 anos depois, liderando a saída do povo, atravessando o deserto, já descartados os milagres, nem assim se confirma.
E não pensem que chegando-se ao Novo Testememto, séculos depois, com relação aos textos escritos em grego koine, haverá maiores garantias de maior credibilidade.
Portanto, a cristandade, ainda que pós-reformada, está subdividida em, pelo menos, dois grupos: o clero acadêmico, que guarda consigo a visão precisa do seguinte dilema: em que mesmo acreditar nas Escrituras?
E os leigos, a massa ignara, que tem duas opções: continua crédula, lendo e supondo que as Escrituras têm mensagem clara, direta e segura; ou atenta para os meandros que necessitam ser esclarecidos, para resgatar o conteúdo dessas mesmas Escrituras de sua aura metafísica.
Muito do que consta como tendo sido dito por Jesus, são palavras postas em sua boca. Há, pelo menos, dois Jesus: o histórico, real, cujo acesso necessita de um GPS que desfaça toda a bruma, o nevoeiro que cega, que distorce sua personalidade real, neblina essa construída precipuamente pelo(s) desconhecido(s) autor(es) evangelista(s).
O descrédito das Escrituras será total. Somente poderá ser, seguramente, decifrada pela academia. Estamos salvos. Não sou contra a academia. Muito pelo contrário. Mas ela parece muito com a imprensa: duras para ouvir críticas.
Quem critica a imprensa, é antidemocrático, por definição. E quem critica a academia, é ignorante, por definição. Bem, em certo sentido, vai ver que cabem em mim essas duas designações, em maior e em menor escala.
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