Casa de vó é
uma coisa que carregamos dentro de nós, ao longo da vida. Mas, já dizia
meu velho, e já ido, pai: o tempo é inexorável. Mas nunca vai apagar a
casa da vó de dentro de mim. O que me lembra a casa da vó? Ora, vai
depender muito da ótica com que se olha. Pois aí vai a minha, muito
pessoal. Ou, dependendo desta vírgula, vai muito, pessoal!
O evangelho. Outros mais, outros menos, a vó Eunice levou
todos os netos que pôde levar, que o tempo lhe permitiu levar à Igreja
Congregacional de Nilópolis. Uns mais, quando os pais desses meninos ou
meninas eram mais descuidados, não dando a esse mister a máxima
importância. Pois Eunice assim acreditava, que deveria ser dada a máxima
importância. Hoje, os netos e netas são pais e mães, aliás, Eunice tem
neto que já é bisavô, mais exatamente o Rúbio, que chamamos Rubinho, mais
exatamente ainda, biavô do único trineto que alcançou Eunice viva. Pois
tais netos e netas nunca poderão dizer que, por ela, não foram
conduzidos à máxima importância. Se deram à essa máxima importância a
importância devida, só eles podem responder. Mas nunca poderão dizer que
não foram, da casa da vó, conduzidos, por mão dela, à igreja.
Eu, por ser, dos netos, o mais velho, com apenas duas lindas
primas à minha frente, nesta vida, por míseros dois, um ano de
dianteira, ainda lembro o avô que tinha na casa da vó. Tula, o avô e seu
apelido, tinha uma oficina para reparos dos artefatos daqueles idos
como, por exemplo, rádios à válvula. Rsrsrsrsrsrs. Eram aqueles
dispositivos que variavam no tamanho e na forma, parecendo lâmpadas, com
placas, dutos e filamentos internos, que acendiam ao serem ligadas,
produzindo um barulho característico, um zunido resultante do efeito do
caminho percorrido pela corrente entre elas: Vzuuuummm. Eram montadas, encaixadas
em soquetes, em cima de um chassi, por debaixo do qual se podia ver o
emaranhado do circuito, já agora repleto de caminhos e contatos de
resistências multicoloridas, com código de cor indicativo do valor em
ohms, entre outros elementos desse circuito em evolução.
Homem de poucas palavras, o Tula, pelo menos com crianças, mas de
um sorriso inesquecível. Sem sombra de dúvida, desculpada a ausência de
meu pai e a presença de meu filho, nunca encontrei um homem que tivesse
um sorriso tão lindo! Uma vez, apontando com o dedo médio da mão
direita, porque perdera o indicador, num labor qualquer da vida,
conversamos, eu e ele, numa noite também inesquecível. Ali mesmo, no
portão da casa à venda, cada tijolo e cada reforma feita com aquelas
mãos de dez, mas agora nove dedos: lembrem daquele portão de ferro
embrutecido, nem tão grande, mas que achávamos mal acabado, as duas
pilastras que o guarneciam, de lado e outro, o canteiro de plantas à
esquerda, com aquele pé de café, de onde ele colhia as frutinhas para
deixar secar ao sol, ali mesmo, ao pé da escada da frente, torrar, moer e
fazer a bebida, e mais o pé de ameixeira, aquelas bem amarelinhas e
azedinhas, no qual subi algumas vezes.
Tula
apontava para as serras de Mesquita e falava, trai-me a memória, mas a
imagem daquele entardecer, tarde-noite, caminha e vai comigo ao longo da vida, inexorável,
dizia o Cid, meu pai, o tempo. E os dentes de Tula, que ele areava, como
se dizia, ao longo do L que formava a lateral e o canteiro da frente da casa da vó,
conferindo o estado das plantas, escovando, escovando, escovando.
Dorcas, a mais velha das cinco filhas, diz que, inexoravelmente, quando
testemunhou o traslado de seus ossos, conferiu que, da arcada, nenhum
dente faltou. O que mais? Muito, pessoal, já disse.
Leila, a caçula, e isso meus primos mais novos não vão lembrar, ou só
agora saber, confeccionava barquinhos de papel, para colocar nos
córregos formados na sarjeta das calçadas, nos dias de chuvaradas de
verão. Saíamos, eu e ela, para essa peraltagem. Não havia calçamento na
Av. Oswaldo Cruz onde, no 306, ainda está a casa. Serpenteávamos,
escolhendo o melhor chão, contornando as poças, como no dia em que vim
sozinho, do Instituto Filgueiras onde fazia, o ainda assim, na época
chamado, Jardim de Infância, atravessando a cancela da REFFSA, como eu
lia nos vagões de trem, por cima dos dormentes que, durante anos, Tula
assentou, trabalhando na turma de linha ou de campo na Central do
Brasil, e prossegui, com aquele uniforme, farda, como chamam no Acre,
ridículo, com babadinhos fofos, elástico na coxa e ainda suspensórios
(lembra para que serviam?), pisando lama.
Os
cachorros da casa da avó. Poucos primos, acho que só aquelas primas
bonitonas de que falei, as únicas duas netas que chegaram antes de mim,
lembram do Blaike (vou grafar assim, para não confundir com black), o
único cachorro que, até hoje, devo completar 58 anos, conheci que tinha,
ora vejam só, lábio leporino. Bom, não sou veterinário, mas o primo
Erlon Campello, o irmão da linda Bela (leia com ∕ ê ∕), pode dar o
termo correto, mesmo porque Blaike não tinha lábios, mas tinha uma fenda
em seu focinho. Era meio caramelo, no pelo. Duque e Peralta, ele e ela,
o macho meio grande, branco encardido e vistoso, ela, mais baixinha e
malhada. A vantagem dela era que cantava, melhor, uivava, toda vez que
Onésimo pegava seu xilofone e se punha a tocar um hino qualquer. Talvez,
baseando-se no Salmo "todo ser que respira, louve ao Senhor". Só na
casa da avó vai haver uma cachorra solista lírica.
Almoços de domingo na casa da avó. Concorridíssimos. Um panelão de
sopa. Uma mesa imensa e farta, em torno da qual todos sentávamos. E a
disputa pelos jilós? Tão característica era que eu mesmo decidi, a
partir dos 14 anos, não disputar o butim daqueles dias, mas comer jiló,
até hoje, garimpado por mim aqui nos mercados de Rio Branco, AC. Abalávamos
de Cascadura, onde morávamos, para Nilópolis, eu e Dorcas: Escola
Dominical e culto na igreja em Cascadura, almoço na vó Eunice, Silvio Santos, das 8
às 18 h, na TV preto e branca (à válvula, evidentemente) em Nilópolis, piadas do
Dante Santos, o tempo todo, disputa entre lacerdistas e getulistas, e pão com carne assada para levar como
merenda, à noite, de volta à igreja. Legal mesmo era quando Marisa
França Costa passava por lá: a estripulia era completa.
Casa da avó. Há muito, em quantidade, a dizer, e em tempo
decorrido. Têm mais de 55 anos essas recordações. Ia esquecendo de falar
da avó. Posso começar pelo sorriso que, quando se abria, os olhos dela
se fechavam, lembram? 96 anos muito bem vividos. Cuidada, nos momentos
finais, pela dupla de netos médicos, Gisley e Alexandre. Essa avó e esse avô deixaram foi a gente
atrás de si. É claro que outros avôs e avós há nessa família, nessa
família enorme, nesse familhão, opa, inexistente a palavra, mas
sintética o bastante. Cada avô e cada avó trazem esse mesmo charme. As
casas deles têm esse mesmo grude. E tais lembranças enchem a nossa vida e
mexem com nossa imaginação. A casa dos avós é esse tipo de museu
permanente. A gente roda esse filme e enxerga as cenas que se sucedem.
Vamos nos encontrar ainda por mais algum tempo. Inexorável. Vamos
nos recordando, comentando com filhos e netos o quanto faltou contar. A
casa da avó nunca mais vai sair de dentro da gente. Mas, para terminar,
já que comecei falando em igreja, nasceu uma na casa da nossa avó.
Aquela área externa nem era tão grande. Parece que as coisas, com o
tempo, diminuem. Caramba, como havia espaço ali para surgir uma igreja?
Era outro avô o pastor, avô da outra prima bonita, a que nasceu
primeiro, a Ruth, carinhosamente chamada Rutinha. O avô dela era o
pastor da igreja nascida na casa da avó. Era tão apertadinho, mas tão
apertadinho, mas tão bem utilizado o espaço útil da área dos fundos, que
roubava um tantinho do local dos cachorros. Por isso, só podia vir da
cabeça dele, Onésimo resolveu chamar uma das Classes da Escola Dominical
de "Carrapatos de Cristo". Hahahahaha.
Termino
aqui. Mas resolvo fazer uma advertência, tomando essa liberdade, para
dizer àqueles primos e primas que, junto comigo, carregam dentro de si a
casa da avó: carreguem também dentro de si algo que a avó Eunice tinha
como bem mais precioso: a igreja. Como Jesus pensou, igreja é como uma
tenda, um tabernáculo que a gente carrega dentro de nós. Sabe para quê?
Para Jesus residir dentro. Todo o povo que está nela, cada um,
individualmente, nem mais, nem menos, nem pior, nem melhor, todos iguais
perante Deus, devem entender igreja assim, desse jeito. Então, aonde a
gente vai, a gente monta e desmonta, mas nunca larga de mão essa tenda.
Foi isso que a vó nos quis transmitir. E conseguiu.
Antigos circuitos de chassi e as notáveis válvulas.
Universidade onde o vô Tula apreendeu a engenharia dos rádios da época.
Engenhoca de (des)travamento do portão (confiscada em nome da revolução) de acesso à casa dos avós (só os fortes se lembram): têm de estar na casa dos -enta: 40, 50, 60, 70 até 100.
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