quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Mal traçadas linhas 10



   
          A Bíblia
           
          Inegável o status que a Bíblia alcançou como Livro. Se prevalece a estatística, ainda é o mais vendido no mundo. Lido, não sei não. Por variados pontos de vista, pelo menos 3 milênios desfilam por suas páginas, senão mais. História, literatura e religião, essa tríade vem marcando a interseção da humanidade com seus textos, para o bem ou para o mal, dependendo do fato de ter sido entendida de maneira acertada ou usada a pretexto.
           
           Fonte de polêmica, sempre um canal aberto que lhe serve de referencial, assim como uma acirrada crítica que caminha paralela aos fatos que descreve. Serão isentos todo o tempo seus autores? Pelo menos supõe-se que sempre acreditaram no que escreveram, visto que, nem sempre, estão a favor da marcha natural desses mesmos fatos ou ao lado, de maneira cúmplice, apoiando os protagonistas da mesma história descrita.

         Só para ficar num exemplo, Jeremias brigava com todo mundo. Supõe-se que nasceu sacerdote, mas nem seus conterrâneos, da vila de Anatote, a 5 km de Jerusalém, queriam-no de volta. Deslocado para a função de profeta, indispunha-se com todos os outros profetas, batia de frente com o pessoal do sacerdócio, contestava os anciãos do povo, acusava de corrupção os juízes e, até mesmo com relação à turma do palácio, isso mesmo, nas barbas do rei, não era consenso entre a nobreza. Para falar a verdade, até o rei ele trazia em sua lista negra. Para se ter uma pálida ideia do problema, Jeoaquim, em nada semelhante a seu pai Josias − este o único rei amenizado pelo profeta − quis matar Jeremias.

           Muito embora seja esta uma discussão deveras interessante sobre a Bíblia, qual seja, a marca de caráter, contexto e valia de seus personagens, seu incômodo maior é dizer-se ou ser aceita por tantos outros como “palavra de Deus”. O autor do Gênesis, por exemplo, logo o seu primeiro livro, que muitos aceitam ser Moisés, porém acadêmicos modernos, com pelo menos já 100 anos de argumentação, francamente contestam essa autoria, pois bem, esse autor, seja lá quem for, atreveu-se a afirmar: “No princípio... Deus”.

             Mais adiante ainda afirma que, além de Deus fazer, de Deus criar, segundo o autor, todo o Universo, Deus disse “Haja luz”. Quero frisar, aqui, que esse (anônimo) autor, além de dizer o que Deus fez, quer dizer o que Deus diz. Aqui temos, portanto, o primeiro profeta no texto da Bíblia. Definitiva e independentemente da discussão, válida ou não, do valor adquirido pelo Livro ao longo de milênios, da quantidade de pessoas ou religiões que o prescrevem como regra de fé ou do valor intrínseco de seu gênero literário, ou ainda referenciais fidedignos de suas indicações históricas, entre todas as outras prováveis discussões, supremo atrevimento foi esse autor dizer “Deus fez”, “Deus disse”.

           Sim, porque nessa formulação, atribui duas coisas a Deus e podemos perguntar: com que autorização afirma isso? Qual sua fonte primária de dados? Como, enfim, sabe ou comprova que “Deus fez” e “Deus disse”? Segue-se adiante ou, definitivamente, alguém se detém, tropeçando logo nessa primeira afirmação. Sim, porque ela é determinante para o valor da narrativa que segue. Se é possível confirmar que “Deus fez” e que “Deus disse”, a postura será uma, com respeito ao grau de fidedignidade do que segue escrito. Caso seja impossível atestar essa confirmação, sim, prossegue-se, até, mas a narrativa e toda a documentação textual que segue terá um viés relacionado a essa segunda postura de suspeita da possibilidade de ser verdadeira a premissa.

          Os textos, então, terão valor literário, histórico, sim, em certo sentido muito bem definido, religioso, é certo, como fenômeno tipicamente humano, enfim, toda a história do texto e de suas interpretações se confunde, definitivamente, e até se funde com a história do Ocidente e do Oriente. Impossível estudar história da humanidade sem levar em conta a Bíblia. Mas se vai longe a premissa que nela, em verdade, comprovadamente, “Deus fez” e “Deus disse”, ora, uma bruta guinada será dada na autenticidade de sua principal afirmação, de que o ponto de partida seja que Deus existe, criou o Universo e pode falar, ser ouvido, comunicar-se com o homem.

               Vivemos uma época da crise de valores, da presunção de se ter resposta para tudo e conhecimento ilimitado, assim como da total permissividade e rápida e radical mudança de paradigmas. Considera-se, definitivamente, a ciência como num patamar de última palavra em todos os sentidos. Portanto, se houve tempo em que a Bíblia fosse considerada uma espécie de "manual de bons costumes", é claro, se fosse lida de modo correto, espelhando um retrato fiel da sociedade, sem meias palavras, trazendo consigo valores, conhecimento ou revelação, enfim, uma exposição e fonte de tesouros e elementos úteis à humanidade, atualmente nem virtudes, nem valores e nem princípios éticos, até mesmo, religião são considerados prioridade ou que a Bíblia seja referencial para tanto.

               Mas resta a ela uma validade, que me parece a principal. Prevalece a sua identidade fundamental: o que Deus faz, o que Deus diz. A Bíblia é o único Livro referencial para o fazer de Deus e para o falar de Deus. Alguém se arrisca a fundamentar que haja outro paradigma para que seja definido conhecer o que Deus faz e o que Deus diz? A identidade da Bíblia é apresentar-se como o agir e o falar de Deus, enfim, a voz de Deus e a identidade, uma revelação de Deus, por seus atos. Se o seu primeiro autor foi verdadeiro e tem credibilidade ao afirmar que “Deus fez” e “Deus disse”, a Bíblia será lida, ao longo de seus textos, por esta marca.  Se esse primeiro profeta mentia, delirava ou somente tinha a intenção de enganar tantos ou inventar religião, nada resta à Bíblia como relevante para a humanidade nos dias atuais. Só interessa na possibilidade de que Deus fale e o homem seja capaz de ouvir.

                  Profeta é quem fala a outrem o que ouviu de Deus. Os autores da Bíblia são autênticos ao afirmar que o que dizem, dizem da parte de Deus? Eles, antes de mais nada, acreditam no que dizem e dizem falar em nome de Deus. Este é o principal absurdo. Este é o absurdo maior das Escrituras. O homem não suporta esta evidência. Torna-se tão perturbadora essa possibilidade que é possível até encontrar teólogos que não creem na existência de Deus ou, se creem, não creem tão literalmente que a Bíblia seja voz de Deus. Estudam e “fazem” teologia por teologia, tornando-se o suprassumo do que até hoje foi produzido na esteira dessa história toda. Agora, Deus falar, Deus fazer, bem, é discutível.

              Talvez seja melhor fechar em torno da questão de ser a Bíblia uma criação do homem, do gênio humano, e assim deve ser estudada. É perturbador que Deus tenha feito, que Deus tenha dito. Não tão óbvio assim. O homem precisa cercar de mistérios a possível revelação de Deus, quem sabe elitizando essa percepção. Não para tantos, não para qualquer, não tão direto e não tão simples assim. O homem precisa cercar até mesmo de incredulidade sua teologia a respeito de Deus. Por muitas outras vias, por outras várias argumentações, por outros variados e complicados sistemas é que se torna possível chegar a um vislumbre de Deus. Nunca tão direto, nunca tão simples.

        Mas a Bíblia insiste em afirmar que Deus se fez homem. Deus surpreendeu o homem. Deus revelou todo mistério. Deus encurtou o caminho. Deus tirou a venda de si, para desvelar-se, e a venda dos olhos do homem. Isso é demais para o homem. Não pode ser assim tão simples, não pode ser assim tão direto, não pode ser assim tão fácil, não pode ser assim tão para todos. É necessária uma mediação e não pode ser por meio de pessoas tão comuns assim. Certa vez, Jesus se expressou, numa oração, dizendo “graças de dou, ó Pai, porque dos ‘sábios’ e ‘entendidos’ ocultaste toda essa simplicidade”.

           Por um único ponto de vista, do primeiro autor (anônimo) do Livro, Deus fez, Deus disse. O primeiro profeta assim se expressou. Esse anônimo, se não foi mesmo Moisés, inventou o método áureo, a regra maior para a serventia que o Livro traz consigo: ou Deus fez e Deus disse, aceita-se assim, ou para nada mais serve, comparativamente será secundária a serventia. Ao longo dos textos do Livro, o que Deus fez, o que Deus disse segue como parâmetro. Ou não.
               

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