A Bíblia
Inegável o
status que a Bíblia alcançou como Livro. Se prevalece a estatística, ainda é o
mais vendido no mundo. Lido, não sei não. Por variados pontos de vista, pelo menos 3
milênios desfilam por suas páginas, senão mais. História, literatura e
religião, essa tríade vem marcando a interseção da humanidade com seus textos, para o bem ou para
o mal, dependendo do fato de ter sido entendida de maneira acertada ou usada a
pretexto.
Fonte de polêmica, sempre um canal aberto
que lhe serve de referencial, assim como uma acirrada crítica que caminha
paralela aos fatos que descreve. Serão isentos todo o tempo seus autores? Pelo menos supõe-se que sempre acreditaram no que escreveram, visto que, nem sempre, estão a favor da
marcha natural desses mesmos fatos ou ao lado, de maneira cúmplice, apoiando os
protagonistas da mesma história descrita.
Só para ficar num exemplo, Jeremias brigava
com todo mundo. Supõe-se que nasceu sacerdote, mas nem seus conterrâneos, da vila
de Anatote, a 5 km de Jerusalém, queriam-no de volta. Deslocado para a função de
profeta, indispunha-se com todos os outros profetas, batia de frente com o
pessoal do sacerdócio, contestava os anciãos do povo, acusava de corrupção os
juízes e, até mesmo com relação à turma do palácio, isso mesmo, nas barbas do
rei, não era consenso entre a nobreza. Para falar a verdade, até o rei ele
trazia em sua lista negra. Para se ter uma pálida ideia do problema, Jeoaquim,
em nada semelhante a seu pai Josias − este o único rei amenizado pelo profeta −
quis matar Jeremias.
Muito embora
seja esta uma discussão deveras interessante sobre a Bíblia, qual seja, a marca
de caráter, contexto e valia de seus personagens, seu incômodo maior é dizer-se
ou ser aceita por tantos outros como “palavra de Deus”. O autor do Gênesis, por
exemplo, logo o seu primeiro livro, que muitos aceitam ser Moisés, porém acadêmicos
modernos, com pelo menos já 100 anos de argumentação, francamente contestam
essa autoria, pois bem, esse autor, seja lá quem for, atreveu-se a afirmar: “No
princípio... Deus”.
Mais adiante ainda afirma que, além de Deus
fazer, de Deus criar, segundo o autor, todo o Universo, Deus disse “Haja luz”. Quero
frisar, aqui, que esse (anônimo) autor, além de dizer o que Deus fez, quer
dizer o que Deus diz. Aqui temos, portanto, o primeiro profeta no texto da Bíblia.
Definitiva e independentemente da discussão, válida ou não, do valor adquirido
pelo Livro ao longo de milênios, da quantidade de pessoas ou religiões que o
prescrevem como regra de fé ou do valor intrínseco de seu gênero literário, ou
ainda referenciais fidedignos de suas indicações históricas, entre todas as outras
prováveis discussões, supremo atrevimento foi esse autor dizer “Deus fez”,
“Deus disse”.
Sim, porque nessa formulação, atribui duas coisas a Deus e podemos perguntar: com que
autorização afirma isso? Qual sua fonte primária de dados? Como, enfim, sabe ou
comprova que “Deus fez” e “Deus disse”? Segue-se adiante ou, definitivamente,
alguém se detém, tropeçando logo nessa primeira afirmação. Sim, porque ela é
determinante para o valor da narrativa que segue. Se é possível confirmar que “Deus
fez” e que “Deus disse”, a postura será uma, com respeito ao grau de fidedignidade
do que segue escrito. Caso seja impossível atestar essa confirmação, sim,
prossegue-se, até, mas a narrativa e toda a documentação textual que segue terá
um viés relacionado a essa segunda postura de suspeita da possibilidade de ser
verdadeira a premissa.
Os textos, então, terão valor
literário, histórico, sim, em certo sentido muito bem definido, religioso, é
certo, como fenômeno tipicamente humano, enfim, toda a história do texto e de
suas interpretações se confunde, definitivamente, e até se funde com a história
do Ocidente e do Oriente. Impossível estudar história da humanidade sem levar
em conta a Bíblia. Mas se vai longe a premissa que nela, em verdade,
comprovadamente, “Deus fez” e “Deus disse”, ora, uma bruta guinada será dada na
autenticidade de sua principal afirmação, de que o ponto de partida seja que Deus
existe, criou o Universo e pode falar, ser ouvido, comunicar-se com o homem.
Vivemos uma época da crise de valores,
da presunção de se ter resposta para tudo e conhecimento ilimitado, assim como
da total permissividade e rápida e radical mudança de paradigmas. Considera-se,
definitivamente, a ciência como num patamar de última palavra em todos os
sentidos. Portanto, se houve tempo em que a Bíblia fosse considerada uma espécie
de "manual de bons costumes", é claro, se fosse lida de modo correto, espelhando um retrato
fiel da sociedade, sem meias palavras, trazendo consigo valores, conhecimento
ou revelação, enfim, uma exposição e fonte de tesouros e elementos úteis à
humanidade, atualmente nem virtudes, nem valores e nem princípios éticos, até
mesmo, religião são considerados prioridade ou que a Bíblia seja referencial
para tanto.
Mas resta a ela uma validade, que me parece
a principal. Prevalece a sua identidade fundamental: o que Deus faz, o que Deus
diz. A Bíblia é o único Livro referencial para o fazer de Deus e para o falar
de Deus. Alguém se arrisca a fundamentar que haja outro paradigma para que seja
definido conhecer o que Deus faz e o que Deus diz? A identidade da Bíblia é
apresentar-se como o agir e o falar de Deus, enfim, a voz de Deus e a identidade, uma revelação de Deus, por seus atos. Se o seu primeiro autor foi verdadeiro e
tem credibilidade ao afirmar que “Deus fez” e “Deus disse”, a Bíblia será lida,
ao longo de seus textos, por esta marca. Se esse primeiro profeta mentia, delirava ou
somente tinha a intenção de enganar tantos ou inventar religião, nada resta à
Bíblia como relevante para a humanidade nos dias atuais. Só interessa na
possibilidade de que Deus fale e o homem seja capaz de ouvir.
Profeta é quem fala a outrem o que
ouviu de Deus. Os autores da Bíblia são autênticos ao afirmar que o que dizem,
dizem da parte de Deus? Eles, antes de mais nada, acreditam no que dizem e
dizem falar em nome de Deus. Este é o principal absurdo. Este é o absurdo maior
das Escrituras. O homem não suporta esta evidência. Torna-se tão perturbadora
essa possibilidade que é possível até encontrar teólogos que não creem na
existência de Deus ou, se creem, não creem tão literalmente que a Bíblia seja
voz de Deus. Estudam e “fazem” teologia por teologia, tornando-se o suprassumo
do que até hoje foi produzido na esteira dessa história toda. Agora, Deus
falar, Deus fazer, bem, é discutível.
Talvez seja melhor fechar em torno da questão
de ser a Bíblia uma criação do homem, do gênio humano, e assim deve ser
estudada. É perturbador que Deus tenha feito, que Deus tenha dito. Não tão
óbvio assim. O homem precisa cercar de mistérios a possível revelação de Deus,
quem sabe elitizando essa percepção. Não para tantos, não para qualquer, não
tão direto e não tão simples assim. O homem precisa cercar até mesmo de
incredulidade sua teologia a respeito de Deus. Por muitas outras vias, por
outras várias argumentações, por outros variados e complicados sistemas é que
se torna possível chegar a um vislumbre de Deus. Nunca tão direto, nunca tão
simples.
Mas a Bíblia
insiste em afirmar que Deus se fez homem. Deus surpreendeu o homem. Deus
revelou todo mistério. Deus encurtou o caminho. Deus tirou a venda de si, para desvelar-se, e a
venda dos olhos do homem. Isso é demais para o homem. Não pode ser assim tão
simples, não pode ser assim tão direto, não pode ser assim tão fácil, não pode
ser assim tão para todos. É necessária uma mediação e não pode ser por meio
de pessoas tão comuns assim. Certa vez, Jesus se expressou, numa oração,
dizendo “graças de dou, ó Pai, porque dos ‘sábios’ e ‘entendidos’ ocultaste
toda essa simplicidade”.
Por um único ponto de vista, do primeiro
autor (anônimo) do Livro, Deus fez, Deus disse. O primeiro profeta assim se
expressou. Esse anônimo, se não foi mesmo Moisés, inventou o método áureo, a
regra maior para a serventia que o Livro traz consigo: ou Deus fez e Deus
disse, aceita-se assim, ou para nada mais serve, comparativamente será secundária a serventia. Ao longo dos textos do Livro,
o que Deus fez, o que Deus disse segue como parâmetro. Ou não.
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