sexta-feira, 12 de dezembro de 2014


Samba da bênção, ou, quem sabe, mistura de teologia com samba

         Creio que Vinicius, quando definiu num título essa preciosidade, muito provavelmente nem tenha pensado constituir-se, para alguns, atrevimento misturar samba e bênção. Mesmo porque são, indiscutivelmente, equivalentes. Sob ameaça de heresia ou, pior, blasfêmia, não terá o poetinha, como era identificado pelo seu parceiro Tom, cometido erro nenhum.
          E, aliás, faz na letra nesse mesmo samba a belíssima definição do que, em sua essência, se é que tenha pensado nisso, uma definição do que seja esse gênero típico e tão plenamente identificado com o brasileiro: o samba é uma forma de oração. Pronto. Definitivamente, samba e teologia estão associados. E não poderia ter começado melhor seu arrazoado, o Vinicius, senão dizendo que "É melhor ser alegre que ser triste/Alegria é a melhor coisa que existe/É assim como a luz no coração."
           Fico imaginando Jesus, perdoem-me o atrevimento, sentado numa roda de samba e comentando esse começo de bênção. Pois foi num descuido desses que eu, manhã morna, após cumprir o primeiro compromisso da manhã, nessa cidade acolhedora e ainda distante do IDH, índice de desenvolvimento humano, que tem seus engarrafamentos de 15 min, o que nos estressa ao máximo, levei meu querido filho à UFAC, a Universidade Federal daqui.
           Desavisadamente, cliquei no dial, se ainda assim for chamado, meu analógico (e nem sei, ainda, a sua diferença para digital, nasci no século passado) muda estação de rádio (lembram disso?), quando passei, inadvertidamente, a ouvir a programação da Rádio Senado, 100.9, vejam só, pelo menos algo que aquela Casa tem de bom. Foi quando.
        Três sambas em sequência me acudiram que vão aí seus títulos e nomes, pescados lá no site Vagalume, o qual recomendo como endereço para que esse paciente leitor os ouça, em toda a sua integridade (do leitor e dos sambas): sucederam-se "As forças da natureza", cantado por Clara Nunes; "Pagodespell", agora cantado pela dupla Martinho da Vila e João Bosco (não poderia ser melhor); e, last but not least, "Coisas banais", desta vez o monumental Paulinho da Viola.
             Pego de surpresa, ainda dentro e no entorno da rotatória da UFAC, sem expectativa de nenhum engarrafamento, nem de 5 min, ainda ia dar 8h no relógio daqui, horário, vejam bem, do sudoeste da amazônia, três a menos que horário de verão por aí, imaginem vocês, 11h da manhã no trânsito aí de sua cidade, sucederam-se as letras e alguns de seus tópicos principais, pegando-me em cheio, nesse milk shake de minha empírica prática teológica. 
              A primeira deixa foi Clara Nunes dizer "As pragas e as ervas daninhas/As armas e os homens de mal/Vão desaparecer nas cinzas de um carnaval". Trata-se de um samba meio apocalíptico. Não, inteiramente apocalíptico. Vale a pena ler a letra toda, que vai num crescendo, até esse arremate (ou remate) final. Imaginem as cinzas de um carnaval dando fim ao mal, todo o mal que existe por aí, disseminado, granulado e salpicado, como dizia Jesus, de dentro, do coração do homem.
            Pensei comigo, caramba, se carnaval acaba em cinzas é porque não deve ser expressivo como algo positivo, quarta-de-cinzas, pois é, alguém encostou o carnaval nesse dia aí, para expiação dos males, possíveis ou provavelmente, por puro descuido, é claro, praticados. Vai lá se saber, não é? É melhor prevenir. Pois imaginem essas cinzas dando um fim definitivo a todo o mal, profetiza a letra do samba. Não sabemos se será numa quarta-feira de cinzas, mas, nesse caso, a profecia confere.
            E quem sabe, então, todos os dias da eternidade serão carnavalescos... Epa, olha a heresia! Peraí, sem Momo, sem mal, só com alegria, festa pública do povo pelas ruas do céu, sim, que a Bíblia diz que no céu tem ruas, cujo asfalto é ouro. Mesmo porque, já dizia Vinicius, é melhor ser alegre que ser triste, alegria é melhor coisa que existe, é assim como a luz no coração e, como somos teológicos e sabemos que a luz é Jesus, taí, samba + bênção. E carnaval no céu.
           E o segundo samba, logo em seguida ao apocalipse, ensinava um modelo de oração e vida diária, quando Bosco ou Martinho da Vila, nem me lembro, ensinou "No Pão de Açúcar/De cada dia/Dai-nos Senhor/A poesia"Não é este um pão ázimo, mas também não é o famoso pão-que-o-diabo-amassou, seria um despretensioso pão doce. E segue o poeta pedindo que, a cada dia, haja poesia na vida. Aliás, palavra que aparece lá em Efésios, quando Paulo afirma que na (re)criação nossa em Cristo, nascidos com cidadania do Reino, como Jesus tentou ensinar a Nicodemos, mais pela sabedoria do Mestre, do que pela capacidade do aluno, somos poesia de Deus.
            Dá-nos, Senhor, a poesia de cada dia. Pedir que sejamos poesia, de que modo, no que dizemos, fazemos, enfim, tudo o que fizermos, seja em palavra ou em ação, enfim, as palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração, trecho de outra poesia, enfim, ao fim, bem, o que significa o pedido doce de que haja poesia a cada dia? Saio, como louco, fotografando árvores, rodovias afora. Estão em extinção. Aliás, resumi minha lista de animais em extinção a um só: o homem/mulher. Vai extinguir todos os outros e a si mesmo, apocalipticamente.
              Cada árvore é uma poesia, assim esgalhada para todo lado e para cima. São viventes da natureza, derrubar cada ou qualquer delas deveria ser crime, como matar seres humanos também é crime. Mas banalizada está a morte, de humanos e de outros viventes, incluídas as árvores. Elas também são poesia, no seu esgarçar, destinadas, também, à matança, até que venha a última quarta-feira de cinzas. Vem, último carnaval. Maranata! 
             E, para terminar, como já falei, last, but not least, Paulinho da Viola vem com um samba de amor. Fala como coisas banais, são banais e devem continuar nessa classificação, nunca e jamais se interpondo contra ou como barreiras ao amor. Nada mais profético: "Quando o amor é de verdade, não se implora/Nem se prende a coisas banais/Repare bem." Repare bem ele adverte, repare bem! Nada melhor do que terminar falando de amor. Pensei, é claro, em minha esposa. E quantos assim não pensaram. Na luta para que as coisas banais nunca se interponham. 
               O compositor menciona, lá atrás no começo, que já recomendei que vocês vejam a íntegra dos sambas, do que se trata, essas coisas banais, de orgulho, vaidade, desamor. Serei caridoso e colocarei tais versos ou tal estrofe aqui, em pauta: Repare bem, não é assim/Que a gente faz com o que tem/Se a gente ama de verdade/Orgulho, vaidade, desamor/São coisas banais que só têm utilidade/Pra machucar o nosso amor." Ora veja só, falar de amor, existe algo menos teológico do que isso? Formule melhor essa questão. Pois samba, é ou não é, uma forma de oração?
            Vai ver que não. Mas está entranhado, vindo d'África, na cultura brasileira, assim, fundido como num apóstrofo, que suprime a preposição, para fundir melhor. Costumo dizer que, muito provavelmente, se Jesus pintasse por aqui, nesta ou na sua cidade, seria um corre-corre para agendar sua, dele, presença nas igrejas, igrejinhas ou igrejonas, 'éfesos' ou 'laodiceias', vá lá que sejam, mas Jesus ia dizer, vai desculpando aí, vou procurar rodas de samba, estimular que não se extingam, como tanta coisa boa que já se extinguiu: pique bandeirinha, bola de gude, campinho de pelada de bola e carrinho de rolimã.
            Vou para as paradas, como contei naquela parábola, procurar a marginália, porque não aguento o que vejo (e o que ouço) aí dentro. Vai desculpando aí, vou recolher a marginália, que a festa está pronta. Mas será um carnaval?

   Cid Mauro Oliveira.




             

Nenhum comentário:

Postar um comentário