sábado, 20 de dezembro de 2014


 "Quem não pode Nova Iorque, vai de Madureira" (Zeca Baleiro)

              Igual. Este é o maior problema. A Bíblia (de novo, ela), eu até ia pedir desculpas por, vira e mexe, falar no livro, mas é cacoete antigo. Por aí, ia mencionando um certo trecho dela que diz, de Deus, que ele não faz acepção de pessoas. Seleção, compreendeu? O que a Bíblia quer deixar claro, nessa fala, é que Deus não dá, nunca fez ou nunca fará, dar preferência a um em detrimento de outro ou outros. Dicionarizado: predileção por alguém, inclinação, tendência em favor de.

          Lascou-se, como diria o carioca. Porque na vida em sociedade não vale essa história de que todos são iguais. Nem perante a lei, teoria jurídica abstrata, válida para poucos que a tentam fazer valer, esses mesmos se nisso acreditam, despertam virulenta aversão da parte daqueles que acham esse princípio uma idiotice, grupo este de extensa maioria. Iguais uma droga, há exaustiva comprovação de que igualdade não existe, é óbvio.

          Em que sentido? Economicamente, às favas, exatamente aí que reside a principal distinção, visto que quem mais tem, mais acima se põe, melhor acesso tem e se expande em gozo maior de seus privilégios, mais do que justa e legitimamente conquistados ou herdados de berço. Intelectualmente, ora, mais distintivamente imposta a lógica de que não pode haver igualdade, mesmo porque um abismo se estabelece entre quem menos e quem mais inteligência possui. É lógico! E o nome? Podes crer, nome é fundamental. Nome é fun-da-men-tal. 

             Um sobrenome vale muito e, às vezes, juntam-se os três, dinheiro, muito, bastante mesmo para estabelecer grau de nível social, onde mora, marca do carro, roupa que veste ou pra comprar qualquer coisa, corromper, enfim, meticulosa é a coisa e mais claras se estabelecem as distinções, dinheiro + QI + sobrenome de graduação nobre, não há como, por critérios que sejam, humanitários, democráticos, jurídicos, enfim, escrúpulos: as diferenças de nível existem e estão aí para quem quiser ver. Justo é que sejam levadas em conta.

            Naturais. São da vida. Realistas, pertencem à condição humana. Nesse sentido, o esforço, muitas vezes com cara de nojo, que visa a igualdade, medida igualitária, equiparação, impossível, levar adiante somente acarretará problema, principalmente quando houver a tentativa do encaixe de uma determinada classe num contexto que não é o seu, como dizia com traço de humor, o chiste, isso não te pertence. Por tradição. Sim, esse é outro critério, a tradição. 

            Essa palavra estabelece, por si, traços de distinções muitas vezes já consagradas no e pelo tempo. Algo cristalizado, que jamais poderá equiparar-se a outro que não traga consigo os mesmos valores. A não ser que outros valores, estes monetários, por exemplo, se imponham. Aí, sim, dinheiro faz milagres, aliás, compra até mesmo títulos e tem poder para transportar de nível a nível, elevar alguém de classe para outra, esqueçam-se tradições e outros que tais, basta fazer escola e adquirir traquejo no que gastar e que traços aparentar, garantida está a superioridade agora herdada, adquirida, conquistada por justificadas razões (pecuniárias).

             Pior. Quando aparecem exceções. Há quem tenha berço nobre, segundo predispõem os pais, por exemplo, mas o menino dá para o inverso. O que houve? Não acredito, eu-não-a-cre-di-to, fala, pausadamente, u'a mãe qualquer. Mas o que, indaga o pai. Nosso filho agora tá com uma mania doida de ser humilde. Como assim, 'humilde'? Deu para achar que todos são iguais, que ele tem de, como disse mesmo, condescender, é isso, condescender. Como assim, não estou entendendo nada. E por aí vai. Nobre, de berço, decidiu expurgar seus privilégios de nascença e assumir humildade, essa virtude bíblica tão mal dissimulada.

              Noutro dia, numa dessas cerimônias ecumênicas, chamaram o padre e depois me chamaram. Aí, o mestre de cerimônias, logo após a fala do sacerdote católico, pediu-me, quer dizer, ofereceu-me também a fala. Neguei, achando que estava de bom tamanho. Claro que não deve ter sido humildade, foi burrice mesmo, nem modéstia terá sido. Minha mulher falou, puxa, com tanto pastor atrás de microfones por aí... Sincera, a minha esposa. Claro que foi burrice, porque cabia ali uma palavra pastoral. Nada a ver. Não devo, mesmo, ser humilde. Mas é essa a primeira virtude. Jesus começa o famoso Sermão da Montanha com bem-aventurança aos humildes, é o começo da coisa, é a partir de.

              E aquele outro versículo, sobre a virtude destacada acima na simulação de diálogo, a historinha do menino teimoso, surpreendendo os pais com essa anacrônica virtude, a humildade, outro trecho bíblico, uma pérola, Romanos 12:16: “Tende o mesmo sentimento uns para com os outros; em lugar de serdes orgulhosos, condescendei com o que é humilde; não sejais sábios aos vossos próprios olhos.” Só rindo, ou sorrindo muito. Poucos vão se prestar a esse papel, ou melhor, a esse papelão, procurando seguir essa normativa neo-testamentária. Aliás, há quem até possa tentar, mas por pura simulação, hipocrisia, pro gasto como, por exemplo, político em época de campanha.

                     Cara, a troca proposta por essa pérola de texto é tríplice: (1) "Ter o mesmo sentimento", já significa equiparação de virtudes, é claro, não se empolgue, que não se trata de cumplicidade em nenhum crime; (2) "Em lugar de", significa troca, ou seja, optar por condescender, que é 'descer, ir para baixo junto com', com quem, com quem? Com o que é humilde, pense, numa opção desta numa sociedade como essa; (3) "sábio aos próprios olhos", trata-se de abrir mão de auto-elogiar-se, não deixando brecha para que os requintes da própria inteligência apareçam, de modo a angariar confetes e serpentinas para si mesmo.

                    É muito. Por isso já diz o filósofo Zeca Baleiro, há que se adaptar e reconhecer, permitam-se a citação: "Quem não pode Nova Iorque, vai de Madureira". Contente-se com sua origem suburbana e nem pense em igualar-se, um dia, equiparar-se, sair por aí achando que todos são iguais, pregando essa utopia em meio a esse meio social vigente. Para Deus, somos iguais antes, no desvio onde todos se situam, e depois, para a segurança, direitos e deveres do curral da fé, onde ele, o Altíssimo, nos colocou, para onde nos chamou, tendo-se oferecido para ser nosso Pastor. Ele nivela, por baixo, antes, quando e como perdidos, e agora nivela também por baixo, chamando-nos servos (uns dos outros).

                   Outra pérola, Filipenses 2:3: "Nada façais por partidarismo ou vanglória, mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mesmo". Pronto. Sem cabimento, como se diz. Não sei de onde esse menino tirou essa ideia, diria a mãe da pequena ilustração, ciosa, preocupadíssima com a ideia do menino em supor que, em sociedade, todos são iguais, ou que se deva perseguir tal bandeira. Portanto, para não dar bandeira, fiquemos com a filosofia do Zeca: quem pode, pode, quem não pode, se sacode.

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