quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O velho lotação entre outras memórias

 
Pelo itinerário escrito à cal,
no para-brisa, acusa que talvez
a gente o frequentasse.

     Tenho que escrever este texto

      Ontem percorri trajeto novo e trajeto antigo. Da estação BRT da Praça do Carmo até Manaceia, colada a Madureira, é traço do século XXI. Da estação de Madureira, trens da, agora, Supervia, antiga Central do Brasil, até o Meier, traçado do século XIX, herança de Cid Gonçalves, meu pai, quem me iniciou nos caminhos do pé de ferro.

   Pé de ferro é a gíria com a qual os colegas da Escola Técnica Federal Celso Suckow da Fonseca, onde estive de 1973-1976, referiam-se ao trem. Todos ingressaram como técnicos em eletrotécnica, no mercado de trabalho, alguns já chegaram a engenheiro, afunilando, uns poucos, a Diretores em Furnas.

  Eu, terminei, não, ainda não terminei,  estou professor de letras, bendição, desculpem o termo, lançada pelo professor Mendel, carrasco daqueles meados da década de 70, que preenchia um quadro inteiro com as letras, quer dizer, números miúdos de seu traço de cálculos em eletricidade, muito bem destrinchados por poucos, como o Ismael, mulato gigante e arguto, um dos que estão em Furnas (a essa altura, aposentado, talvez, por Temer o Michel).

  Interpelado por uma das mais atiradas e corajosas meninas, que perguntavam, professor, pra que tudo isso, ele respondia, virando olhos fuzilantes, translúcidos de tão claros, ruivo e magro que era (ou, ainda, é), ele dizia: é assim mesmo, minha filha; depois não quero que saia aluno daqui pra fazer letras. Esse, sou eu.

  Se leu até aqui, pare, porque a veia aberta deste texto é nostálgica. É melhor parar, pois vou prosseguir, vício duplo, escrever é leitura, por teclas miúdas do smartphone. Coincidências à parte, saltei ontem do trem na estação do Meier. Não pude de deixar de fazer as contas.

   2017, se eu alcançar maio, chego aos 60. Nascido em 1957, viemos pro Meier, eu, Dorcas e Cid, em 1967. E ontem, capricho do destino, a composição que me trouxe de Madureira ao destino, era um modelo recauchutado dos trens japoneses que começaram a circular em 1977, ano que entrei na PUC/RJ, ainda na inércia do Mendel, para tentar engenharia elétrica, tentativa abortada em janeiro de três anos depois.

  É muita conta redonda. Madureira, ponto de referência onde peguei trem para Campo Grande, para ali entrar no ônibus Campo Grande-Pedra de Guaratiba, saltando no Colégio Municipal Leocádia Torres, onde lecionei língua portuguesa na metade final de 1994. Madureira, de onde me abalava, a pé, por dentro, pela Praça Patriarca, ou por ônibus, até o 297 da Intendente Magalhães, onde residimos Regina, Isaac e eu, entre os janeiros de 1993-1995, antes de ir para o Acre, onde estamos, faz neste janeiro 22 anos.

  Pode parar aqui. Madureira, Cascadura, vem o trem. Daqui pegávamos, meu pai e eu, agora são os vagões estilo "Getúlio Vargas", década de 30, para irmos ao Servidores do Estado, meu hospital de nascença. Aí, era "descer ao Centro", como se falava na época. Em 31 de março de 1964, contava eu quase 7 anos, a completar em 6 de maio, Cid voltou da estação de Cascadura para a Mendes de Aguiar 90/102: está um tumulto lá na Central, dizia, diz que tem soldados, as tropas estão na rua.

  Pare aqui. Espere o 2. Mas ainda busco o sentido deste. Com minha mãe, para ir ao Servidores, eu pegava o Lotação. Sim, não eram esses modernos ônibus com aproveitamento de espaço, motor interno: eram aqueles com motor externo que, caso desse tranco, o motorista saía com manivela em punho para fazê-lo pegar. Acontecia, às vezes, que dava trampo. Não tinha jeito: era esperar o outro.

  Portas, não, a porta era uma só, igual ao cântico infantil. Para fechá-la, uma geringonça ao alcance do motorista, outra manivela presa a um eixo, no chão, com longa haste ligada à porta. Fazia-a girar em torno do eixo, para um lado, fechada; para o outro, aberta. Eu gostava de sentar-me à janela. Esse era o distintivo entre o Lotação e o trem: naquele, a espera da fila permitia entrar no momento auspicioso e escolher lugar.

  A janela compunha-se de duas metades horizontais de vidro: deslizava-se a banda de baixo para cima, fechada estava; para baixo, paralela ao vidro fixo, estava aberta. Uma ligeira dobra de metal guarnecia a parte que deslizava, para que ela se encaixasse sobre a parte imóvel, sem travar embaixo. Com a mãe a viagem era mais agradável. Com o pai, via pernas numa floresta delas, viajando de pé, nos trens da Central. Quando alguém se apiedava, permitia ao menino ajoelhar-se no espaço que se abria entre passageiros, que gentilmente afastavam pernas, no assento, para que eu pudesse ver pela janela.

  Decorei o trajeto. O mais esperado era aquele mecanismo enorme que consistia numa esteira de garrafas, deslizando em sequência num trilho descendente, sendo lavadas enquanto desciam, formando um edifício monumental. Eram as instalações da CCPL, Cooperativa Central dos Produtores de Leite, lavando seus litros, para a distribuição do nutritivo e preciso líquido à população dos anos 60. O litro tinha uma tampa metalizada flexível, adaptada ao formato do gargalo. Eu a transformava numa colherinha, para rapar a nata que formava em cima, isso se e com o consentimento da mãe, como sempre.

  Fosse lotação, fosse o trem da Central, o caminho era para consulta ou tratamento no HSE, Hospital dos Servidores do Estado, onde nasci em 1957, operei fimose em 1963, adenoide e amígdalas, talvez 1965 e, agora com certeza, fiquei internado entre junho e setembro de 1967, milagre maior, egresso da emergência do Carlos Chagas. Nessa derradeira hospedagem, fui submetido a 5 mini cirurgias, para curativo na perna esquerda, esfacelada em 27 de junho de 1967, na esquina de Padre Manso, que ironia, com Ernani Cardoso, em Cascadura, vestia eu o uniforme (farda, no Acre) da 5a série primária da Escola Paraná.

   Mais um enxerto, sexta cirurgia, e o garoto, liberado, pôde passar o dia das crianças de 1967, com gesso e saltinho, para ensaiar pequenas caminhadas, na cama Dragoflex, na sala do 102 da Mendes de Aguiar, 90, ainda em Cascadura. Pronto: poderia caminhar, pela Ernani Cardoso, até à Escola Paraná, atravessando a mesma esquina do sinistro, para subir a escada interna em direção à sala de aulas. Nesse mesmo ano, haveríamos, já, de nos abalar para o Meier, onde hoje estou, com Isaac, meu filho, 22 anos, tempo que resido no Acre, para onde fomos em 1995, estou sendo repetitivo, perambulando pelo Meier já há 50 anos.
 

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