quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Mais para Sodoma do que para Nova Jerusalém

    Vivemos tempo em que os textos bíblicos são questionados ao máximo. Claro que isso é cíclico. Portanto, não há novidade. Desde o Iluminismo se pratica, ou seja, há mais de 200 anos, e somente atualizam-se por que novos métodos e escolas, selecionadas quais partes das Escrituras e por quais motivos terão sua credibilidade questionada. 

 
    Meu professor de Metodologia Científica, no curso do bacharelado em teologia, Martineis Anjo Gonçalves, comentava conosco, na virada dos anos 70/80 do século passado, sobre fazer da Bíblia "campo de caça" de teologias, de hermenêuticas, exegeses, enfim, interpretações várias, retirando dela a competência de ser original (ou relevante) em relação ao que diz.

     Pobre Bíblia. O que mais se faz hoje. E, na medida em que se propala toda essa liberdade, em que, em graus diversos e num tom professoral se avança na determinação dos tipos de escola de pensamento que definem novas abordagens sobre a Bíblia, triste de quem discorda, vindo à reboque, na tentativa de confirmar o que, um dia, supôs-se de ser o específico do livro, ou seja, suposição de que fosse "palavra de Deus".

      Quem hoje insiste em afirmar que a Bíblia é "palavra de Deus", bem, em que sentido afirma, já se questiona, caso insista dizer que é no sentido literal, cuidado, prepara (como diz Anitta, desculpe a citação), vão chamar você de fundamentalista, no aspecto acadêmico(?)-teológico, e "de direita", direta e consequentemente, no aspecto político, já que o período é definido como "de polarização" e ai de quem não seguir a verdade imposta. Ou seja, são tempos de exceção de novo.

      Pois a visão distintiva entre as duas cidades mencionadas, Sodoma e a apocalíptica Nova Jerusalém que, no Apocalipse, desce do céu a se implantar no mundo, essas duas tradições bíblicas de texto precisam ser checadas em relação ao seu significado, para o que apontam e em que grau de objetividade servem como simbolismo. Podemos escolher o método e focar as duas, em seu contexto, submentendo-as ao escrutínio e definindo, a fim de retirar dos respetivos textos, lições que se apliquem, devidamente, ao tempo atual.

     Sodoma tem cada vez mais atualidade, numa relação prática com a realidade e numa assunção dos direitos que ela representa. A "Nova Jerusalém" já terá um valor mais questionável. A começar pelo seu teor místico e, talvez, pelo próprio dístico "Jerusalém", que divide atenção entre muçulmanos, cristãos e judeus. Incluído o distintivo de cada religião, uma vez imersos nos meandros da mais valia, dependendo do viés político, ser muçulmano, cristão ou judeu vai implicar graduação de valor.

     Porque ser muçulmano é ser politicamente correto, ser cristão pode ser sinônimo de fundamentalista, se não estiver engajado no movimento progessista da hora, e ser judeu é estar do lado errado da força. Portando, "Jerusalém" já evoca essa intrincada carga semântica. E, nesse texto apocalíptico, está relacionada a cristãos. Nada relacionado ao islã, nem ao judaísmo. 

      Portanto, a legenda "Nova Jerusalém" avança para o místico, enquanto que Sodoma avança para o mundo real. Cada vez mais redimida, enquanto que a visão de uma cidade que desce do céu, inspirada na visão do profeta Ezequiel, que afirma, em relação à cidade que avista, que Deus habita nela, ora, que "Deus"? Seria a "cidade de uma teocracia"? A cidade de um Deus moral, que seleciona excluindo? Se os tempos são de inclusão, uma teocracia que exclui só pode ser obra de um "poder opressor". Urge reinterpretar, para entender e, por enquanto, preservar Sodoma e descartar a outra.

       Neste texto queremos comparar a reabilitação de Sodoma em relação à utopia que representa imaginar uma cidade que desce do céu. Comparar a mentalidade que indica uma cidade onde Deus mora, "o Senhor está ali", como afirma Ezequiel, o profeta, no último versículo de seu livro, e o que representa, como choque de realidade, a reabilitação de Sodoma e, simbolicamente, tudo o que as práticas de que era acusada representavam. Uma vez reabilitada, Sodoma representará muito mais o tempo em que vivemos.

      Por exemplo, numa visão fundamentalista da Bíblia, a destruição de Sodoma e sua vizinha Gomorra se deu em função de práticas reprováveis. Deus chama Abraão para uma conversa, porque nela vivia Ló, sobrinho do patriarca, filho de Harã, o irmão caçula de Abraão, que havia falecido exatamente no lugar do crescente fértil que passou a ter o nome dele, o pai de Ló, a meio caminho da peregrinação de Abraão, o tio, este o pai de árabes e judeus, na jornada (mítica?!) entre a Mesopotâmia e a Palestina.

      Anjos, então, vão livrar Ló, emergencialmente, da destruição que virá sobre as duas cidades e, quando se dirigem à casa do sobrinho do patriarca árabe-judeu, destacavam-se em seu porte e são notados. A casa de Ló é procurada por uma turba, que insiste em que os dois varões sejam-lhes entregues para que possam ser abusados, ou seja, violados sexualmente. Daí o termo "sodomia", caracterizando sexo anal, que passou a estigmatizar esse tipo de ato, daí para a frente associado ao nome da cidade, "sodomia", substantivo, ou "sodomita", o que se dá à prática desse ato.

     Pois o que desejo destacar e usar como exemplo de mudança de abordagem no texto bíblico ou do uso franqueado do texto, aberto a qualquer interpretação que se queira dar, se espelha na comparação do que representa a visão com relação à cidade de Sodoma, que indicamos como portadora de uma abordagem que redunda numa postura prática no contexto da realidade atual, enquanto a expectativa em relação à outra cidade, a Nova Jerusalém, representaria uma abordagem muito além do mundo real prático, sob risco de uma visão opressora e não libertadora, exclusivista e não inclusivista, atente-se para a legenda de onde procede essa hermenêutica.

      Para tanto, destacam-se aspectos das duas cidades que, confrontados, podem ser avaliados por seu grau de relevância, quando abordados no contexto atual. Vamos alinhar de modo a permitir uma avaliação comparativa das duas cidades, para saber, deste modo, qual delas se revela mais realista e atualizada. 

       Em Sodoma, na direção dela Ló, o sobrinho de Abraão, constrói seu acampamento e estabelece suas tendas, quando o tio resolveu favoravelmente a ele o conflito entre os pastores de gado de um e de outro. O patriarca seguiu no rumo oposto. Cada qual fez sua escolha, porém na escolha de Ló, estava implícito o perigo que representava Sodoma para ele, sua família e seus pastores. 

     Se comparamos Sodoma, atualizando-a como modelo simbólico para cidades atuais, era a cidade desde as festas Rave, aos inocentes passeios nos shoppings e, adiante, quando anjos se apressaram a retirar Ló e o que havia restado de sua família, não era ambiente para eles: se foram, não tinham do que reclamar do assédio sofrido. Não era lugar para eles estarem e, se ali se meteram, apenas constataram o que ali era natural e corriqueiro. Entraram na casa dos outros para cobrar deles princípios éticos. Pois nada tinham a ver com isso. Se iriam reprovar seus modos, não lhes tinham que se meter na vida deles.

      Buscar Ló? Ora, as próprias Escrituras descrevem do que eram capazes suas filhas que, obviamente, tendo embebedado o próprio pai para, depois, manterem relações sexuais, uma e outra, com medo de não terem filhos, bem definiram o estilo de sua personalidade. Se houvesse tempo de se divulgar, em Sodoma, esse expediente das filhas de Ló, até os moradores da cidade expressariam, na sua opinião, caramba, dessa vez as meninas se excederam. 

      Exatamente nessa direção que se deseja caminhar, ou seja, para dentro de Sodoma, para se conhecer o que vem a partir dela, ou seja, o que se pode tirar de concreto e aplicável aos dias atuais, em oposição ao utópico, simbólico, exaurido, imagético e esvaziado de sentido de uma cidade onde, apenas o que se diz dela é que vai descer do céu e terá Deus habitando nela. 

    Há limites, evidentemente, para os escrúpulos de Sodoma, basta, como método, supor, no contexto dela, o disparate da atitude das meninas, filhas de Ló. Uma atitude dessas a sociedade atual ainda não aprova. Mas anjos que reclamam por sofrer assédio numa festa de vale tudo, o erro é deles, por se colocar fora de contexto.

     Uma releitura acertada dos textos bíblicos nos coloca dentro da perspetiva correta com que devem ser abordados, livrando-nos de interpretações equivocadas e francamente distorcidas, em relação à imagem atual com que tais textos devem ser compreendidos. Um resgate que se faz urgente e necessário, de modo a corrigir visões distorcidas e excludentes.

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