segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Necrópole - IX

      Efusivos cumprimentos na saída. Ainda no corredor central, dentro da igreja, as pessoas se acercavam de Raul, cumprimentavam, abraçavam, davam tapinhas no ombro e na cabecinha do menino: "Que lindo!", "Gente, que corajoso", etc, nos comentários.

    A mãe sorria amarelo, Rauana continuava séria e compenetrada nesses cumprimentos, "Parabéns, presbítero", o tio também era cumprimentado pelo acontecimento. Raul sempre sorrindo. Custou chegarem à porta de saída, ali o tio os abraçou, demonstrando sincera alegria, despedia-se e oferecia a igreja para o retorno deles.

     A menina, finalmente, deu um leve sorriso, a mãe, para o tio, sorriu com alegria sincera, acercaram-se do Fusca, aguardaram a manobra dos demais carros, o tio, sorridente, ajudou e ganharam a rua, de volta para casa. Silêncio no carro, naquele universo minúsculo e, naquele momento, densamente habitado.

     Filhos atrás, pais na frente e, como diziam os antigos, Raul, o pai, "caiu na besteira" de fazer um comentário: bonito, não é?! Em nenhuma outra situação, Laura diria qualquer coisa. Comedida. Não discutiam nunca na frente das crianças. Comentários dos dois eram entre os dois, nunca os filhos os viram trocar altercações.

      Bonito, Raul, bonito!? Bonito digo eu. Bonito, digo eu, ela repetia. Mas foi como num rompante, algo, assim, represado, que todos entenderam e estranharam na mãe. O pai continuou com a atenção no trânsito, muito embora a mãe já tivesse identificado uma sutil reação, o que já era o "passar recibo" e predispunha à liça.

      As crianças reagiram na hora, ela mesma entendeu que traíra a sua tradição de autocontrole, o menino cravando-lhe os olhos, a partir do banco de trás, a menina, séria, apenas tendo revirado os olhos, os quatro concordando com a reação inusitada. Silêncio. Não se sabia, diante da situação configurada, quem daria continuidade e qual seria, a partir de então, o enfoque da conversa.

     Raul, isso mesmo, o menino veio em socorro. Mãe, a gente foi sincero. Foi como num foguete, em direção ao espaço, ela se enterrando no banco da frente pelo empuxo do arranque. Silêncio. Ela se refazia. Não é, pai? Pronto. O menino democratizava, perigosamente, a questão, trazendo de novo a situação à baila.

      O pai assumiu. Foi sim, meu filho, espontâneo e sincero de nossa parte. A gente se empolgou. O que eu quero dizer, aqui a mãe retornou ao assunto, refeita, é que a atitude de vocês dois, dizendo pausada e gesticuladamente, entendeu, meu filho, implica, quer dizer, requer, procurava o vocabulário à altura do menino, compromisso.

     Vocês assumiram um compromisso com aquela atitude. Não é brincadeira. Vocês vão assumir? Mas ninguém achou que era brincadeira não, mãe: não é, pai? Ela interrompeu antes do marido falar. O que eu quero dizer, meu filho, é que assumir compromisso é ser dessa igreja, entendeu? Quando a gente toma essa atitude, as pessoas cobram da gente. Vocês têm de dar continuidade. E dar continuidade é entrar para essa igreja. 

      Pausa. O pai deu continuidade. Minha querida, veja bem, ele levava em conta que o menino ouvia e então dirigia-se, prioritariamente, a ele. Uma coisa é a gente entender aquilo que o meu tio falou, outra coisa é a gente firmar compromisso com a igreja. Eu acho... Ela ia interromper... Eu acho, ela recuou, que uma coisa é compromisso com Deus, não  é, meu filho, que foi o que a gente fez, outra é com a igreja.

      Aí é que está. Aí é que está, interferiu a esposa. Eu acho que as duas coisas estão juntas. Por isso eu estranhei a atitude de vocês. E Rauana percebeu. Ao mesmo tempo que incluía a menina na pugna, queria contar com a filha como aliada. Rauana continuou séria e calada. Uma coisa é vocês pensarem com vocês mesmos, entendeu, meu filho, falava, didática, olhando com meia volta para trás, outra coisa é o que as pessoas da igreja pensam.

      O que você acha, meu filho?  Por essa a mãe não esperava. Mas também, se recorrera à menina, o pai recorreu ao menino. A mãe revirou o olhar. Ia dizer, mas se segurou, porque não tinha como argumentar que essa pergunta era demais para o menino. O que pai? A mãe olhou com careta para o marido, como a dizer, você também, essa não é pergunta que se faça ao menino. Mas não disse.

     Meu filho, se a gente deve ficar na igreja. Eu gostei da igreja, pai. Para vir todo domingo, entendeu, seguir a crença. Peraí, pai. Agora foi Rauana que não se aguentou. Raul, a mãe acha que agora a gente tem de ficar indo naquela igreja, porque você e o pai foram lá, na frente, quando o tio do pai perguntou.

     Eu fui porque ele perguntou quem acreditava que Jesus pode fazer a pessoa filho de Deus. Eu entendi isso. Ele perguntou quem acreditava nisso. Eu acredito, então fui. E você, pai? Ora, meu filho dileto, às vezes, usava este adjetivo: eu acredito igual a você. Mas ficar ligado por compromisso à igreja, é outra opção, falou assim, ressaltando o vocábulo. É, pai. Eu também acho. Estavam, nessa altura dobrando a ladeira que ia dar na Escola Pública, já pertinho de casa.

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