Saiu à sacada. Foi fumar. Dizia que havia largado: "Não. Larguei o cigarro". Dizia. Mas havia pedido um no corredor, ao colaborador da faxina.
Havia uma varanda contígua à enfermaria. Portanto, saiu a fumar nela. Olhava à frente, noite alta, olhava a brasa do cigarro, expelia e também via a fumaça.
A irmã era terminal. CA. Trabalhara a vida toda. Cargo na justiça. Salário bom. Por isso, podia pagar plano de saúde robusto. Estavam ali.
Família muito unida. Os dois, único casal de filhos, solteiros. Melhor, solteirões. Ele já tivera uns casos. Mas concluiu que nem para casos servia. Era raro, não, raríssimo procurar mulher.
Não ligava para isso. E de tão reservado que era, nem círculo de amizade, direito, tinha, para que houvesse gozações sobre isso. Era problema dele.
Gerente de uma loja de peças. Humano. Mas na dele. Então, não havia espaço, nem dava pé para essas brincadeiras. Já a irmã tivera um grande amor. Único. Mal sucedido.
Ela deduziu que ele só lhe queria o corpo. Não deu. Não compartilhou. Muito inteligente, fez e foi o que quis. Faculdade. Tradutora e até bico como dubladora. Concurso. Justiça do trabalho.
Ele, sempre brigado com a escola, lutou muito até o Clássico, assim chamavam na época. Quase não termina. Terminou a custo. Começou administração e parou, nem no meio, no início mesmo.
Foi trabalhar como balconista nessa loja. Cedo revelou percepção, compromisso, diplomacia, logo foi subindo, até essa gerência. Estava por lá. E a irmã estava por ali.
Muito amigos. A irmã, no leito, plenamente consciente, sorria para ele. Mais preocupada com ele, do que com ela mesma. Não abordavam, diretamente, o mal que a acometia.
De tudo falavam, lépidos e práticos em tudo o que se referisse aos cuidados hospitalares com ela: banhos, medições, medicamentos, visitas, que eram raras, incômodos, remédios, enfim.
Agora estava ali. Era noite. Olhava a brasa do cigarro, cuspia a fumaça para cima, via a evolução dela, refletia: "Droga, voltei para essa merda".
Os pais haviam falecido quase que juntos. Os filhos cuidaram deles o tempo inteiro. Talvez, por isso, não tenham tido tempo para si. A amizade dos dois, Walter e Isadora, talvez mais ainda fosse assim tão forte, pela parceria que tiveram no ombro a ombro com que cuidaram dos velhos.
Riam um para o outro, os dois irmãos, divertindo-se com as manias dos pais. Sofreram juntos a perda. Mas gratos, os dois, pelos pais que tiveram, super amorosos. Quem mais se preocupava se iriam casar ou não era a mãe.
Sempre se divertiam e riam muito quando o assunto entrava nessa temática. O pai ria com os olhos. Era de falar pouco. A mãe não, era faladeira. Mas do jeito manso, sutil, silencioso, que não fazia algaravia.
Ela dona de casa. Ele carpinteiro. Entendia tudo e muito de madeiras. Colocasse uma casa inteira aos seus cuidados. Punha de pé. Ela, receiteira de mão cheia. Luna, conhecido pelo sobrenome, Aldenora, uma rainha na vizinhança.
A rua toda parou quando ela faleceu. 88 anos. Mansa, como um passarinho. Bem cuidada. Morreu dormindo. Por volta do amanhecer, umas 4h10min, ela percebeu a mãe dar um suspiro mais profundo. Era o passamento.
Ele, o velho, enfrentou com galhardia. Viam-se os olhos umedecidos. Sorria espremido, a cada manifestação de pesar, e foram muitas. Os dois filhos, então, redobraram os seus cuidados com ele. Um dia, todos se reuniram para distribuir os pertences dela.
"Papai, dizia a filha, eu sei que é doloroso, mas a gente vai ter de se reunir, um dia, para ajeitar as coisas da mamãe". O pai respondia, "Ora, está bem: é só marcar". Era prático. Marcaram.
Mais riram, lembrando o jeito da mãe, do que choraram. Abraçavam-se, o filho era de rir menos, mas a muher ria fácil, como a mãe. E com o rosto inteiro, como o pai.
Ela era uma muher bonita. Porte alto, clara, como a mãe. O pai era mais moreno. O filho puxara a sua cor. Era daquelas mulheres que não são belíssimas, mas reunia tudo o que, na verdade, embeleza, com valor agregado, uma mulher.
Inteligente. Falar oportuno e moderado. Tom de meia voz. Personalidade. Presença. O imbecil que a quis só para consumo, era vil. Só por esse expediente. Porque tinha ela consigo que somente acolheria para si um modelo de relação se fosse idêntico ao dos pais.
Coisa de décadas atrás. Não consentia que fosse como essa modernidade consentia. Foi rápido. Bastou ela perceber as intenções do dito cujo, com muita elegância, descartou. Ele ainda regateou, para somente parecer ridículo para ele. Dispensado.
O irmão ainda fez menção das intenções dele com a irmã. Ganhou um tapa no ombro e um sorriso malicioso dela. Riram juntos. Aliás, ele somente ria com a irmã. Reconhecia que tinha uma melancolia existencial.
Um dia, a mãe o interpelou: "Meu filho, esse jeito pensativo você herdou de seu avô. Papai era assim. Você é igualzinho a ele. Mas olha bem: ocupe-se, que sua mente desencanta".
Pronto. Essa versão de sua mãe para o jeito herdado do avô, um encanto, grudou nele. Por isso, sempre que fumava e, quando o fazia, nos intervalos de suas ocupações, lembrava que estava dando espaço aos encantos que herdara do avô. Belíssima solução de sua mãe para essa sua modorra, ele pensava.
Cuspiu fumaça. Estava na metade do cigarro. Olhou dentro, no leito, a irmã. Dormia pálida. Lembrou da morte da mãe, feito passarinho. Olhou a brasa. Havia parado, lá atrás, porque cismara que estava preso ao vício por causa do encanto herdado.
Havia parado, porque havia lembrado da mãe, para que desencantasse, e resolveu não mais vincular seu azedume existencial ao fumo. Havia parado mesmo. Esse ele pegou de raiva, porque estava pensando no que seria a vida sem a irmã.
Ficaria ele só. Cuspiu a última baforada. Olhou a guimba pela última vez. Cachuletou-a por cima do parapeito. Repetiu o xingamento, logo que deu conta. A mãe havia ensinado a não se jogar lixo alhures.
Olhou mais uma vez a irmã. Lembrou do pai, chorando mansinho, quase imperceptível, esquanto recolhia os pertences da falecida.
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