Era uma quinta-feira comum. Quer dizer, em termos. Porque havia uma tal reunião, dessas, bem ao meu estilo, congestionada de pessoas e para um assunto tão relevante que, 35 anos depois, nem me lembro.
Bem, alguém poderá dizer que 35 anos, realmente, é muito tempo. Mas para mim, não, porque eu acho que deveria, sim, lembrar. Para essa reunião contei voto a voto, entupi o GP, como a garotada chamava o Gabinete Pastoral, de gente, contabilizando os contra versus os a favor.
Democrático, indevidamente, deviam ser, no mínimo, seis pessoas, uma por departamento da igreja, ela mesma, a Congregacional de Cascadura, nossa, minha e de minha esposa, igrejinha da infância. Devem ter comparecido Coro, sim, a regente, na época, nem namorada era, jovens, união feminina, homens, patrimônio, oficiais, pelo menos o tesoureiro, enfim.
Discutimos e eu esperava, sinceramente, que justo a primeira fala, que foi dessa regente, fosse favorável a mim. Porque viviam dizendo que ela me tinha interesse. Pois eu até me empolguei, porque vinha contando os votos, alinhados e não alinhados, em cima do muro, mas o dela estava na conta dos meus. E sua fala, de estalo, logo em primeiro lugar, animou-me. Pronto, dizia eu, efeito dominó: ela me será favorável e, na sequência, virão os demais.
Assim influenciados, dizia eu. Mas ela disse não. Acho que esse branco, de nem saber ou lembrar do quê, tem a ver com o susto. Foi um susto. Um choque. Acho que não ouvi mais nada. Mesmo porque, raciocinem comigo a lógica desse não. Eu mesmo me vi prisioneiro de minha própria dedução.
Ora, todos pensaram, se essa que dizem ser a "prometida" ou candidata do pastor discorda dele, ou seja, não concorda, quando o lógico seria concordar, esse argumento de reunião que nos traz aqui está fraco na fonte. Porque se a própria base de sustentação, e que base!, impugna com um não, está prejudicado.
Sei que não tive forças para contestar. Ou se o fiz, fi-lo tenderly, quer dizer, suavemente, porque não havia nem mais forças para contestações. Repito que detalhes do assunto não lembro, mas reconheço que contornei o foco, tentando fazer, àquela altura, o impossível: justificar o injustificável, ponderar o imponderável, enfim, dissimular por que entregaria os pontos assim, tão facilmente, o que não era, definitivamente, o meu estilo.
Raciocinando de outra maneira, se a regente se posicionasse a meu favor, eu partiria para cima, com ela a meu lado, sem retroceder diante de ninguém ali no grupo. Mas com ela contra mim, não ficando do meu lado, só tinha uma solução: vou colocá-la do meu lado para toda a vida. Essa seria a minha, vamos dizer, vingança. Minha vingança será benigna, acho que pensei.
Eu acho que a determinação que foi se materializando em minha mente, a partir desse não, é que não me deixou lembrar de mais nada, acho mesmo que no dia mesmo, com a continuidade da reunião, não ouvi mais nada. O que se desenhava passou a ser o mais importante, dane-se (desculpe o termo) o resto.
Não devo nem mesmo mais ter discutido nada, ainda na igreja, no pós-reunião, apagou foi tudo, não sou teórico de psicanálise, mas só pensava numa coisa, que assomou e cresceu como um leviatã apocalíptico: tenho de namorar essa mulher. E dali, desse momento kairótico em diante (do grego kairós, "momento", "átimo", quer dizer, "tempo", mas não no sentido cronológico, mas no sentido da "oportunidade"), eu dizia é hoje, tem de ser hoje, não passa de hoje.
Doce rotina, eu, como sempre, levava a regente a casa. Passava adiante do meu bairro uns 2 ou 2,5 km e a levava ao bairro dela, contíguo ao meu. Era rotina. Mas nunca passou disso, reles carona. Um ou outro papo mais, ou menos, relevante. Mas não nesse dia. Minha mãe ia ao meu lado, obviamente, ela atrás. E na cabeça, já urdido, o plano. Conversamos veleidades no carro. Era o fusquinha azul RV-2644. Lendário. Claro que não me lembro o teor da conversa, mas um substrato oculto havia. Urdido.
Chegamos. Desci. Acompanhei à porta. Era portão externo. Escadinha. Porta blindex. Elevador ao fundo. Troca de mais veleidades de assunto. É isso aí. Sim. Patati, patatá. Despedimo-nos. Era o plano. Precisava prevenir minha mãe para um retorno. Porque caso demorasse, como realmente demorei, depois, ela nada peguntaria ou se contentaria com uma desculpa qualquer de assunto.
Despedimo-nos. Calculei o deslocamento dela ao elevador. O tempo que ele demoraria para descer. Vim ao carro rapidíssimo. Ih, disse a Dorcas: um assunto com Regina, espere aí, que me esqueci. Retornei rápido ao portão, atravessei, havia deixado entreaberto, é claro, escadinha aos saltos, bati na porta blindex. Foi como se fosse tudo slow motion.
Câmera lenta a mão dela se deslocando à empunhadura da porta do elevador. Eu me deslocando com múltiplas pernas até à porta blindex, ignorando os degraus da escadinha. Batidas à porta. Ela virando lentamente. Olhos arregalados de surpresa. Meia volta e vem em minha direção. Para sempre. Sem se cansar. Para casar. Tudo em câmera lenta. Para sempre.
Sim, disse ao abrir a porta blindex. Bem, desculpe, esqueci, quer dizer, é que eu queria, bem, como dizem, quer dizer, dizem que dizem, mas não é porque dizem, nada a ver que dizem, ou se dizem, é que eu queria dizer... E não dizia. Os olhos dela, supercílios congelados numa posição de alerta, dúvida ou incompreensão, sobrecenho franzido, eu nervoso, quase 40 min falando (exagero, foi só uns 35 min), só para marcar uma conversa.
É que as justificativas eram inúmeras. Afinal, havia acordado de uma hibernação. O dragão me havia despertado, escancarado boca e dentes e soprado fumo, fumaça, fogo e enxofre em minha cara: acorda, infeliz. E aí, perguntou Dorcas, na volta ao carro. Nada, quer dizer, disse. Dei lá que desculpa.
Só ela pode dizer como subiu, naquela noite, o elevador. Sentindo o quê. Provavelmente, não diga. Quanto a mim, dirigi até em casa o fusquinha azul. Depois, conto como foi o encontro para uma tal conversa, a pretexto daquela tal reunião, para um tal assunto, encontro esse que se levou 35 min para se marcar.
Momentos para não esquecer. E desses 35 anos, 28 de casamento, rumo aos 30. Parabéns!!!!!!
ResponderExcluirSim. Para não esquecer...
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