Há momentos na vida sublimes. Aliás, o Autor da vida, que começou por colocar-nos num jardim, deseja que todos os momentos fossem sublimes. Queria sublime a vida inteira. Mas, como costumo dizer, agora nus e fora do paraíso, o Autor planejou, em meio a caminhada, estalagens no meio do caminho. Mas não para fuga, senão abrigo.
Uma delas, e lá sevão, mais ou manos, quase 35 anos, montamos num quitinete em Copacabana. Bairro com sua história, apenas um areal no início do século passado, com a construção do Túnel Novo, em 1906, ora vejam só, o areal foi então desbravado, e por uma linha de bondes. E o nome Copacabana provém de uma igrejinha, erguida outrora bem na ponta onde hoje fica o Forte de Copacabana, obra iniciada em 1908, onde atualmente situa-se um Museu do Exército, no Posto 6.
Bem ali ao lado visitava, com Eunice Spiller, duas irmãs suas amigas. Ela foi diaconisa e alma dessa estalagem do quitinete, a Igreja Congregacional em Copacabana, iniciada em 31 de outubro de 1985, exatos 468 anos depois da Reforma, pela coincidência desta data. Lá cheguei em 1991, a convite de seu fundador, pastor Antonio Limeira Neto, retirante pelo sertão baiano, com sua família, pedreiro operário construtor de instalações no antigo IBP - Instituto Bíblico em Pedra de Guaratiba, na década de 1940 e desbravador, na década de 1980, em Boa Vista, RR, Manaus, AM e Rio Branco, AC, onde estamos desde 1995, eu e minha família.
Havia na sala desse quitinete um grupo, na época, denominado Neuróticos Anônimos, hoje conhecidos pelo nome de menos sobressaltos de Emocionais Anônimos. Como foi reconfortante aprender com eles e seus dilemas, muito dos quais tocantes, mas que os revelava como heróis e gigantes de suas próprias emoções. Sentávamos uma das tardes daquelas semanas, cerca de 1h30min exatos, para estudar Os Doze Passos e as Sete Tradições. Estas, para se saber como conduzir o grupo, aquelas, os efetivos passos para domesticar as emoções.
Em meio a esse grupo conheci Hilede Catanhede. Orgulhosa de seu nome e sua família. cerregada de recordações, que até hoje lamento de não haver muito mais explorado em nossas diversas conversas, pois se tornou assídua frequentadora de nossa estalagem no meio do caminho da vida. Amiga de coração minha e de Eunice. Chegou a contar sobre sua infância, ora, pelos meus cáculos, na década de 1920, por um desses casarões de Botafogo. Descrevia os jantares em família, para acolher as visitas especiais. E vez por outras, mencionava por nomes os irmãos, cada um deles em seus encargos de renome.
Certa vez, contou como, no elevador do edifíco onde residiu, na Tonelero, incidentalmente esbarrou com JK e seu sorriso. Sim, era bem perto ali do outro túnel, denominado Rubem Vaz, em desagravo ao assassinato do major-aviador, em 5 de agosto de 1954, que vai desencadear os acontecimentos que findam no suicídio de Vargas naquele mesmo 24 de agosto. Hilede viveu no coração da história e esbarrou com seus atores.
Com era bom conversar com ela, surfar por sua visão de mundo, seu modo de navegar em vento suave pela vida, fossem quais fossem as ameaças de tempestade no horizoente. Nesse seu apartamentinho da foto que, por hiatos de minha vaga memória e ausência de um diário de vida, nem mesmo do endereço eu lembro, nós a visitamos várias vezes, tornando a distância Rio Branco, AC-Copacabana, Rio, RJ zero. E a foto acima bem retrata um desses dias de paz e de alegria, de afagos de saudade.
Era uma católica convicta, amiga de um pastor protestante, no caso eu mesmo, atenta aos estudos bíblicos das noites de quarta-feira. Mil perguntas, seguia com sua devoção a Maria e aos anjos, e eu com meu painel celeste simplificado, na única mediação que nós admitimos, por meio de Jesus. Mas as diferenças nunca nos afastaram, ao contrário, definiam nossa identidade e toda a possibilidade de amor.
Hilede Catanhede me fez e nos fez conviver com momentos sublimes nesta breve existência que todos compartilhamos. Sua agilidade, versatilidade de raciocínio, praticidade no trato, simplicidade na equação da vida concedeu ao grupo dos Emocionais, à nossa reunião, fosse de oração ou de estudos bíblicos, e a mim e Eunice, nesse quitinete, um conforto angelical. Certa vez, discutimos essa história de conversar com os anjos.
Ela insistiu em dizer que conversava com o seu anjo da guarda. Eu insisti em dizer que não conversava com o meu. E tudo acabou bem, tudo acabou igual, ela com o seu sorriso e eu com esse meu. Ainda me vejo caminhando com Hilede pelas transversais de Copacabana, após os encontros de nossos grupos, nas tardes-noite daqueles dias. Nessa foto desse encontro, ela beirava os 89 anos. Numa visita à portaria do edifício onde residia, tempos depois, o porteiro me informou que havia se mudado para a casa do irmão, em Cabo Frio.
A essa altura, eu acho que já se mudou de novo, mas, desta vez, para seu endereço definitivo. E não mais vai conversar, apenas, com o seu anjo da guarda, mas com todos. E devem estar sorrindo muito juntos. Pois as histórias que ela contava e as confidências que fazia, do modo como, vitoriosa, aprendeu a superar seus revezes, devem fazer sucesso nesse novo endereço. Anjos adoram (Epa! Desculpem, sem saber direito seu destino final), apreciam muito histórias de humanas desse viés.
Pequeno recital do dia: