domingo, 15 de outubro de 2023

Águas de março

 18/05/2001 - 10h08

"Águas de Março", de Tom Jobim, é eleita a melhor da história

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LÚCIO RIBEIRO
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Folha de S.Paulo

"Águas de Março", de Tom Jobim (1927-1994), é considerada a melhor música brasileira da história, de acordo com enquete realizada pela Ilustrada junto a 214 pessoas de faixas etárias diversas, entre personalidades do meio musical e cultural e jornalistas.

A pergunta "Qual a melhor música brasileira de todos os tempos", englobando MPB e as várias vertentes do pop, faz parte da série de enquetes de iniciativa do caderno cultural da Folha, num ranking do que de mais significativo se fez na música brasileira, desde o primeiro samba gravado, "Pelo Telefone", de 1917, até o mais recente disco do Pato Fu.

Cada votante foi estimulado a escolher suas três canções prediletas, sob critério aberto.

Em março último, a capa do álbum "Secos & Molhados" (73), com as cabeças dos quatro membros do grupo que revelou Ney Matogrosso servidas à mesa, foi eleita a melhor da história.

"Águas de Março", histórica canção de Tom Jobim composta em 1972, venceu a enquete para a qual foram pedidos votos que levassem em consideração letra, melodia, conjunto, importância, razões históricas, razões afetivas e uma mistura disso tudo.

A música de Tom Jobim recebeu 23 votos. A segunda melhor canção brasileira desde sempre é "Construção" (1971), de Chico Buarque, com 21 menções.

Jobim volta à terceira posição, por sua parceria com Vinicius de Moraes em "Chega de Saudade" (1958). Marco fundador da bossa nova, na voz de João Gilberto, teve 18 votos. Tom reaparece ainda duas vezes entre as dez mais.

"Retrato em Branco e Preto" (1968, em parceria com Chico Buarque) fica em sexto lugar, empatada com "Detalhes" (1971, de Roberto e Erasmo Carlos) e "As Rosas Não Falam" (de Cartola, gravada pelo autor em 1976).
"Garota de Ipanema" (1963, também com Vinicius) divide o sétimo lugar com "Asa Branca" (1947, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) e "Domingo no Parque" (1967, Gilberto Gil).

"Corcovado" (1960) e "Desafinado" (1958, com Newton Mendonça) participam de um empate entre sete canções, na nona colocação, e "Wave" (1967) aparece com outras seis no décimo lugar.

Somando os votos obtidos por cada autor da MPB em suas várias canções, Jobim também dispara na frente. Recebeu 110 menções, contra 69 ao segundo colocado -Chico, de novo. O terceiro é Vinicius de Moraes, com 48 lembranças por suas parcerias com Tom, Chico, Baden Powell, Edu Lobo, Carlos Lyra e Toquinho.

O quarto lugar é dividido entre o tropicalista Caetano Veloso e o azarão Jorge Ben (nenhum voto para a fase Ben Jor): 34 menções.

A dupla mais bem-sucedida da história do pop nacional ocupa a quinta vaga do ranking. Roberto Carlos e Erasmo Carlos levaram 24 votos cada um, porque apenas canções compostas pelos dois em parceria foram lembradas.

As mulheres chegam em desvantagem à lista. Rita Lee recebeu 15 votos (majoritariamente por suas músicas com os Mutantes), empatando em 11º com Cartola entre autores mais votados.

Por fim, a galeria de autores da MPB oscila quanto ao número de canções lembradas de cada um. Tom e Chico estão novamente na frente, agora empatados -cada um teve 32 músicas citadas pelos votantes.

O segundo lugar vai para Jorge Ben, que só tem "Mas que Nada" (1963) na lista das mais mais, mas acumula votos para 22 músicas diferentes. Caetano o segue de perto, com 20 músicas votadas.

Veja a letra da música:

"É pau, é pedra,
é o fim do caminho
É um resto de toco,
é um pouco sozinho/

É um caco de vidro,
é a vida, é o sol
É a noite, é a morte,
é o laço, é o anzol

É peroba do campo,
é o nó da madeira
Caingá candeia,
é o matita-pereira

É madeira de vento,
tombo da ribanceira
É o mistério profundo,
é o queira ou não queira

É o vento ventando,
é o fim da ladeira
É a viga, é o vão,
festa da cumeeira

É a chuva chovendo,
é conversa ribeira
Das águas de março,
é o fim da canseira

É o pé, é o chão,
é a marcha estradeira
Passarinho na mão,
pedra de atiradeira

É uma ave no céu,
é uma ave no chão
É um regato,
é uma fonte,
é um pedaço de pão

É o fundo do poço,
é o fim do caminho
No rosto o desgosto,
é um pouco sozinho

É um estrepe, é um prego,
é uma ponta, é um ponto
É um pingo pingando,
é uma conta, é um conto

É um peixe, é um gesto,
é uma prata brilhando
É a luz da manhã,
é o tijolo chegando

É a lenha, é o dia,
é o fim da picada
É a garrafa de cana,
o estilhaço na estrada

É o projeto da casa,
é o corpo na cama
É o carro enguiçado,
é a lama, é a lama

É um passo, é uma ponte,
é um sapo, é uma rã
É um resto de mato,
na luz da manhã
são as águas de março
fechando o verão
É a promessa de vida
no teu coração

É uma cobra, é um pau,
é João, é José
É um espinho na mão,
é um corte no pé

São as águas de março
fechando o verão
É a promessa de vida
no teu coração

É pau, é pedra,
é o fim do caminho
É um resto de toco,
é um pouco sozinho

É um passo, é uma ponte,
é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã

São as águas de março
fechando o verão
É a promessa de vida
no teu coração".

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Álvares de Azevedo (1831-1852)

  Desânimo

"Estou agora triste. Há nesta vida
Páginas torvas que se não apagam,

Nódoas que não se lavam… se esquecê-las
De todo não é dado a quem padece…
Ao menos resta ao sonhador consolo
No imaginar dos sonhos de mancebo!

Oh! voltai uma vez! eu sofro tanto!
Meus sonhos, consolai-me! distraí-me!
Anjos das ilusões, as asas brancas
As névoas puras, que outro sol matiza.
Abri ante meus olhos que abraseiam
E lágrimas não tem que a dor do peito
Transbordem um momento…

E tu, imagem,
Ilusão de mulher, querido sonho,
Na hora derradeira, vem sentar-te,
Pensativa e saudosa no meu leito!
O que sofres? que dor desconhecida
Inunda de palor teu rosto virgem?
Por que tu’alma dobra taciturna,
Como um lírio a um bafo d’infortúnio?
Por que tão melancólica suspiras?

Ilusão, ideal, a ti meus sonhos,
Como os cantos a Deus se erguem gemendo!
Por ti meu pobre coração palpita…
Eu sofro tanto! meus exaustos dias
Não sei por que logo ao nascer manchou-os
De negra profecia um Deus irado.
Outros meu fado invejam… Que loucura!
Que valem as ridículas vaidades
De uma vida opulenta, os falsos mimos
De gente que não ama? Até o gênio
Que Deus lançou-me à doentia fronte,
Qual semente perdida num rochedo,
Tudo isso que vale, se padeço!

Nessas horas talvez em mim não pensas:
Pousas sombria a desmaiada face
Na doce mão e pendes-te sonhando
No teu mundo ideal de fantasia…
Se meu orgulho, que fraqueia agora,
Pudesse crer que ao pobre desditoso
Sagravas uma ideia, uma saudade…
Eu seria um instante venturoso!

Mas não… ali no baile fascinante,
Na alegria brutal da noite ardente,
No sorriso ebrioso e tresloucado
Daqueles homens que, pra rir um pouco,
Encobrem sob a máscara o semblante,
Tu não pensas em mim. Na tua idéia
Se minha imagem retratou-se um dia
Foi como a estrela peregrina e pálida
Sobre a face de um lago…