quarta-feira, 18 de agosto de 2021

A velha

        A fama da velha era injusta. Nas redondezas, diziam, por pura implicância, que tinha 100 anos. Nem tanto. Alguma coisa entre 80 e 90. Ficava por ali, nas redondezas do bairro.

     A lenda urbana dizia que ela era onipresente e onisciente. Porque era uma das primeiras moradoras do bairro, diziam que  a invasão começara por ela, e que sabia tudo de todo mundo. Exagero.

    Mais pela figura, do que pela atividade. Porque tinha uma figura singular, num certo sentido, até meio sinistra, e estava sempre por ali, na calçada, cedo do dia, começo de noite, sim, porque tarde da noite apenas se via a lâmpada de sua casa, de matiz amarelado, dependurada, a partir do teto, pendida, presa num bocal envelhecido como ela, pendente do teto da casa, madeira escura pelo tempo, envelhecidos como ela, a casa e o tempo.

    Dava a impressão que, quem saísse cedo, pela manhã, para o batente, daria com ela ali, estratégica, rosto multiengilhado, quer dizer, com rugas mil, nariz bico de águia, queixo pronunciado, sem a característica verruga, conferindo um perfil vulgar, então, pela ausência dela, era portadora de uma feição solene.

    Sinistramente solene. Os olhos miudinhos, como se fossem dois rasgos na pele encarquilhada, duas rugas a mais num mar delas, nesse rosto amarrotado por elas, acentuavam o tom profético de seu prognóstico. Era possível entrever, dentro, na fresta dessas duas fendas, brechando, as pupilas baças, um desbotado que já havia sido negro.

     Diziam que dar com ela, pela manhã, assuntando, dava azar. Roupa para maior do que o seu tamanho. Blusa abotoada até a gárgula da garganta, gola imensa, pontuadas, angulares, que pareciam guarnecer todo o tórax, mangas que só deixavam ver as pontas dos dedos, com unhas distorcidamente aparadas.

    Saiote cumprido até o pé. Pontas dos dedos das unhas ainda mais brutas e endurecidas do que as das mãos. Chinelas. Rosto enorme. Rasgo de boca. Lábios finíssimos. Uma só menina das redondezas, chamada Maria, acenava para ela, todos os dias, em que saía com sua mochila às costas, montada em sua bike, caminho para o trabalho, caixa de supermercado. 'dia, d. Maria, ela dizia. A velha, lentamente, voltava o rosto, alteava, imperceptivelmente, a mão, afastando do vestido e da posição despencada, pendida, um átimo de distância. Era o aceno. Maria desenhava um lindo sorriso seu para Maria, a velha. Ganhava esse aceno. 

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