quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Artigos soltos 54

           

          Jesus ninguém

         Noel Rosa tem uma composição sua nomeada João Ninguém. Clique no link abaixo e ouça por que esse João está assim designado. O pronome “ninguém”, que já se qualifica indefinido, cola no nome João como se virasse um adjetivo.

         O que, mais ainda, identifica ou desqualifica, por assim dizer, esse João. Sem dizer, quer dizer, dizendo que João já, ainda que, como nome próprio, é frequentemente usado como generalização de, exatamente, ninguém.

Quando se diz João, como no caso do famoso driblador Mané Garrincha (1933-1983), indicava qual o zagueiro ou defensor da hora, a levar mais um de seus dribles. Era tão certo que, aliás, como seu único tipo de drible, que Garrincha iria, como agora extinto ponta-direita, passar até a linha de fundo, todos, indistintamente, eram classificados como Joões.

Pois João Ninguém pode também ser considerado o autor do quarto Evangelho. Romanticamente, dizem alguns estudiosos, costumamos associar a identidade desse João ao personagem “discípulo amado”, exatamente pela história narrada e pela qualificação encontrada no próprio evangelho, ver Jo 13,23.

Sem discutir essa avaliação aí escrita, o que desejamos ressaltar é a capacidade de afirmar que os diálogos e discursos de Jesus, no notável quarto evangelho, sejam ipisissima verba (palavras literais) do próprio Jesus.

Porque, se não podemos ter isso confirmado, o João do quarto evangelho é um João Ninguém. Longe de depreciar a figura desconhecida da autoria, como destacam esse estudiosos, e também sem associar máxima identidade o João de Noel Rosa com esse anônimo ou desconhecido evangelista cognominado João, apenas destacamos tratar-se de ninguém identificado.

O que compromete, em minha nem talvez tão modesta opinião, o conteúdo do evangelho. Por que a pergunta por, afinal, palavras de Jesus que, na verdade, não são palavras de Jesus e se, afinal, Jesus falou mesmo o que ali vai escrito ou tudo não passa de um rol de telúricas palavras, ainda que, muito bem intencionadas, a ele atribuídas.

João Ninguém também o será o do Apocalipse. Não deve ser o João, discípulo amado. Se suspeita-se dele, em relação ao Evangelho, em relação ao Apocalipse é que lava-se, de uma vez, a égua (ao inverso), ou seja, tem-se plena certeza de que não pode ser o mesmo autor do Evangelho. Talvez um tal João presbítero, outro João e, talvez ou certamente, mais Ninguém ainda.

Não se discute ou se deprecia, evidentemente, a grandeza, a envergadura desse Evangelho, em muito diverso dos outros três, que seguem um esquema definido, daí ser identificados como sinóticos, ou seja, portadores de uma visão compartilhada, entre esses três, a partir de uma subdivisão que Marcos, o primeiro deles a ser escrito, idealizou.

Todos os três, do mesmo modo que o quarto, quanto à sua autoria, são respingados por esse mesmo método que indefine se são, como encabeçado em cada um, como autores, os nomes Marcos, Mateus ou Lucas. Joões Ninguém. Para ficar, somente, na autoria. Fora a discussão sobre os fatos narrados, se cada um deles é fato histórico com registro e, ponto mais delicado ainda, os milagres.

Transita-se, com muito cuidado, por esses meandros. Pois corre-se o risco de, no final das contas, ainda que com o perfil por eles quatro traçado, tenhamos não um João, mas um Jesus Ninguém.


Noel Rosa: João Ninguém

https://www.youtube.com/watch?v=YoqB8pjR0uk

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