segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XVIII - Peraltices I

        A casa da avó ficava na esquina de Dr. Rufino com Osvaldo Cruz. Aos poucos o vô Tula, nickname do Baldomero Leal de Araujo, foi construindo. Dorcas, segunda dos 8 filhos que se criaram, acompanhou passo a passo essas etapas.

      Conta que no nascimento da caçula, Leila, quando ela já namorava meu pai, as janelas ainda tinham pranchas de madeira que as guarnecessem. E mesmo assim era casa de total hospitalidade.

       Antônio, meu avô paterno, veio de Itaocara para tratamento médico na capital daqueles dias. Hospedou-se em casa de minha avó Eunice, viu-me apenas recém-nascido e ali mesmo faleceu.

      Todos os genros de minha avó, numa etapa de sua vida, hospedaram-se naquela casa. Meu pai, quando solteiro, ainda recebeu ajuda de meu avô para construírem no Éden, não o jardim, mas o bairro de São João de Meriti, a casa do casal, casados em 29/05/1954.

        Baldomero, este o filho mais velho, ocupou a outra metade da casa, sim, meu avô dividiu-a ao meio. Essa parte foi oferecida antes a minha mãe, que não escolheu essa modalidade de inquilinato, opção de Merinho e Zila, os que por mais tempo e com a privacidade dessa parede-meio ocuparam a outra metade.

       Aprontei muito com Rúbio, meu primo, caçula com Rute, filhos desse casal, na casa de minha avó. A única vez na vida que vi meu avô se envolver com pirraça de neto, foi comigo. Eu e Rubinho, apelido, colecionávamos folhetos de propaganda política, na época de confecção ainda amadora, impresso o rosto do candidato, com tinta preta, em papéis multicores.

       Eu e meu primo chamávamos dinheiro e juntávamos blocos e mais blocos, muito novinhos os folhetos, em grande quantidade, amarelos, azuis, verdes, rosas, brancos, enfim, dividíamos entre nós. Certa hora, Rubinho apropriou-se de uma quantidade muito maior do que a minha, denunciei, fiz queixa, importunei minha avó, quis intervenção, ela avaliou por menos, pirracei. Muito. Minha reivindicação era que havia uma injustiça, alguma coisa tinha de ser feita e o meio pelo qual eu me manifestava era por uma brutal pirraça.

       Esperneava no chão, batia as duas pernas, abalava para os dois lados a cabeça, com o que restara dos folhetos que sobraram nas mãos, bem ali, na cozinha velha, antiga que, exatamente por que a casa estava dividida ao meio, era apertadinha.

      Tula estava na sua oficina. Era uma parte secreta da casa, lugar exclusivo de acesso pelo Tula. Talvez quando seu cunhado Nelson o visitasse, que não era frequente, esse irmão de minha avó morava em Bangu, mais ainda internado nesse bairro, os dois eram eletricistas do mundo das válvulas. Ora, só os(as) netos(as) mais velhos(as) se lembram dessa bat-caverna.

        Instituto Univesal, cuja propaganda vinha no verso das últimas capas das revistas em quadrinhos da EBAL - Editora Brasil América, formava pelos correios, isso mesmo, EAD, escola a distância anos 40 a 70, enviava testes e materiais para formar diversos profissionais, no caso de Tula e Nelson, eletricistas.

      Em plena, no clímax da pirraça, Tula que, sei lá no que mexia, só sei que armou com suas pernas um arco por cima do menino que esperneava no chão, brandiu os dois braços, é claro que nunca usaria as ferramentas que tinha nas mãos, mas lembro uma delas ser uma perna de três, na outra, provavelmente um serrote ou até um martelo, para clamar: "Cala a boca, menino!".

       ..... ..... na hora.... Engoli o choro sem lágrimas e a pirraça junto. Lembro-me de sua carranca enfática, de suas costas largas, das mãos enormes, numa delas faltando o indicador, retirando-se de volta à sua oficina-refúgio. Afastou-se curvo para seu recanto e recato, meio que arrastando as chinelas, que era seu jeito.

       A vó Eunice veio dizer "viu, viu", a título de advertência. Eu, olhos arregalados, mais pelo inusitado do fato, que era a intervenção raríssima do avô nesses assuntos, do que propriamente a cena presenciada, aquilatei, também por influência da fala da avó, o grau da crise que eu provocara.

      Mas Rúbio não era fácil (também). Lembro de nosso malabarismo, muito evidentemente sem nossa comum avó saber, andando os dois, ora, avaliem bem, por cima do muro da frente da casa. E transitávamos por cima do muro, pulávamos o espaço do portão, criança tem mesmo titica de galinha na cabeça, eu e Rúbio, Rúbio e eu, foi quando. Houve una hora em que fiquei só eu. Meu primo, vá lá por que cargas d'água, havia descido. Certa hora parei e ele, com o par de olhos muito azuis que tem, até hoje, pai de duas lindas meninas que já lhe deram netos, irmãs de dois temporões gêmeos lindíssimos que Deus deu ao casal (aliás, antes de nossa avó falecer, aos 96 anos, foi trisavó do bisneto desse meu primo). Com esses olhos e um sorriso Coringa, Rúbio me grampeou com as garras de sua mão meu pé. De cima do muro, não acreditei. Antes que eu esboçasse reação, pelo menos gritasse um nãããããooooo, eu já estava caído, atravessado na vala negra, aquela mesma que levava os barquinhos de papel que nossa tia Leila confeccionava, nos dias que as chuvas de verão a faziam transbordar e tornar, pelo menos, barrenta a água fétida.

       Ele puxou com vontade e ímpeto o meu pé, despencou-me daquela altura, pelo menos, na época, rua sem calçamento, quase 2 m, caí sem fala e sem fala fiquei, por causa do impacto. Providência divina, não fiquei "carcunda", que era como mencionávamos esse tipo de deficiência, outro milagre foi eu ver o rosto de Leila, vindo ver, lá de cima, debruçada no muro, o desastre ocorrido. Acho que por intuição veio ver, talvez porque Rúbio deve ter aparecido sozinho, disfarçando, lá nos fundos. Ou porque quando criança do nosso tipo fica mesmo meio largada pra lá, podes crer, vai dar.... titica.... Socorreu-me, nem foram tantas as escoriações, as torções musculares, acho, nenhum ferimento de sangue, argh, talvez porque chovesse, a terra estava fofa e havia anjos de prontidão. Talvez.    

        É claro que aqui nenhum demérito ao meu primo. O que vai escrito aqui são reminiscências da infância, para ele e para mim, aliás, para todos os primos e primas dessa família gratificantes. Por isso somos amigos e amigas até hoje, Rúbio e todos nós. Em 2007 estivemos toda a família e mais minha mãe na casa dele em Paraty. Momentos inesquecíveis.

        Grato a Deus. Grato a Rúbio. Todos, primos e primas, sejamos gratos pela dádiva que foram e ainda são nossos pais, avós, tios e tias e filhos e filhas, bens maiores, continuidade na terra da presença viva desses heróis que nos precederam e nos educaram. Viva!




Rádio a válvula, 
especialidade do Tula








Um comentário: