sexta-feira, 7 de outubro de 2016


                  Verbete.

 Contente-se. Esta é a principal distinção nossa em relação aos outros animais: a capacidade de nos definirmos por meio de um verbete de Enciclopédia. Falando de outra maneira, ou seja, a linguagem nos distingue. O uso construtivo dessa capacidade. Sim, porque se formos entender esse dispositivo, uso da linguagem, como define Tiago, a língua humana possui uma tremenda capacidade destrutiva.

     E olha que, aqui, nem estamos nos referindo, própria ou diretamente, à fofoca, à pura dissimulação ou mesmo à difamação. Ainda que muito bem intencionados, muitas vezes, até mesmo de forma elegante, num disfarce, numa roupagem intelectual, reduzimos a nada alguém, especificamente, ou qualquer outro.

  Podemos nos ver por óticas variadas. Nossa documentação, a reflexão que fazemos de nós mesmos, a análise benfazeja que, de nós, fazem os amigos, por outro lado, a análise maldita que, de nós, fazem os inimigos, estes com escrúpulos de, assim, serem reconhecidos. O fato é que, na melhor das hipóteses, é melhor que nos enxerguemos como um verbete de Enciclopedia.

 Certo. Essa capacidade de formulação nos salva de sermos contados entre os irracionais. Desse modo, perdemos para eles apenas no quesito do inusitado. Explico. A animália irracional, exaustivamente estudada, tem já descritas todas as nuances de seu comportamento. Já se sabe o que deles esperar. Quanto aos humanos, assim reconhecidos, não se sabe, totalmente, que ou quais malvadezas vão surpreender.

 Evidentemente, seria injusto somente destacar este aspecto da condição humana, qual seja, sua capacidade de surpreender negativamente. Grande obras o gênero humano tem empreendido. Creio até que é possível afirmar, como se fosse numa perspectiva compensatória, numa pura intenção de redenção para essa mesma condição humana, que as muitas, variadas e boas obras, se comparadas à variedade das desgraças, perpetradas por essa mesma humanidade, a redimem.

     De súbito. O homem carece de uma visão de si mesmo. Seja ela proveniente da exatidão e método científicos, ou, vá lá que seja, proveniente de formulação teológica. Para o gasto, no dia a dia, que fosse até mesmo a visão especulativa, puramente empírica, diríamos, pro gasto, mas se torna essencial essa visão de si mesmo. Afinal, somos racionais. Houve até um tempo em que se falava muito de autoconhecimento, outro em que se falava de autoajuda, ou ainda neurociência, enfim, que seja a sabedoria de botequim, todos temos o direito de efetuar uma espécie de "auto formulação" de si mesmo.

   Até onde nos recolha a nossa fragmentária memória, até onde nos remeta a nossa capacidade de repaginar a existência, evidentemente, para quem se (pre)ocupa com isso. E afirmo que até os soberbos, e talvez, principalmente eles, se ocupem com isso. Vale a pena reconhecer que nos cabe, uma vez, justa e continuamente atualizados, afirmo que o que melhor nos define, pro gasto, é um verbete de Enciclopédia. Talvez não mais do nível Barsa, mesmo que fosse digitalizada, porém dessas mais recentes, online.

     É certo que um tal salmista, no saltério, disse que o Deus de quem a Bíblia conta a história enalteceu o ser humano, nestes termos: "Que é o homem que dele te lembres? E o filho do homem que o visites?". Ok, essa pergunta parece colocar esse ser (humano) no seu devido lugar. Porém, a resposta surpreende: "Fizeste-o, no entanto, por um pouco menor do que os anjos e de glória e honra o coroaste". Isso, surpreendentemente quer dizer que Deus se ocupa, prioritariamente, com o homem, numa leitura mais atenta da Bíblia.

     Levando em conta a possibilidade de que sejam verdadeiras essas palavras, quais sejam, que Deus existe e que, uma vez existindo, tenha mesmo criado o homem (a Sua imagem e semelhança) e que ainda se ocupe de coroá-lo de glória e honra, talvez estejamos, aí, resgatados da mediocridade de valer ou sermos medidos por um verbete da Barsa.

      De qualquer modo, a definição bíblica de fé se aplica também à ciência (e até ao ateísmo, agora militante): "certeza de coisas que se esperam, convicção de fatos que não se viram." Uma vez impossibilitados de comprovar se Deus existe, resta-nos abraçar essa definição de fé, ou de ciência, ou de ateísmo: ver, mesmo, ninguém viu, mas que há convicção, essa há. E quanto a ter esperança, bem, alguns esperam, um dia, ver Deus. Outros, não podem ter total certeza de que nunca o verão. E quanto à ciência, ora, essa, mais do que ninguém, baseia-se no que não viu, projetando uma expectativa de certeza para o futuro. Grande pretensão.

    Enquanto isso, narcisista, o homem vai se achando muito além do que um simples verbete.

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