sexta-feira, 19 de junho de 2015


  Nada como um bom colírio.

            Simpática essa droga, colírio, ameno remédio, serve para deixar translúcida a visão. Se há um dos cinco sentidos, todos eles de igual valor, mas esse que se generaliza, mesmo quando dele não se pode dispor, todos os outros vêm em seu socorro, para produzir, no conjunto, visão. Aliás, a Bíblia, ela, de novo, brinca com esses conceitos, quando afirma "Quem tem ouvidos para ouvir, ouça." Quer provocar que, nem sempre, quem tem ouvido, ouve ou, quem tem olhos, enxerga.

         Daí a necessidade do colírio. E, como teste, seja de paciência ou de sensibilidade, quem sabe até mesmo honestidade consigo mesmo, falar de Bíblia torna-se um teste para quem deseja avaliar se é preconceituoso. Sim, porque o valor do Livro só se desvenda diante de olhos desarmados, sem predisposição a toda e qualquer espécie de preconceito o que, em si só, já se constitui um exagero, porque isso de não ser preconceituoso é questão de vigilância, aprendizado constante e comunhão, prioritariamente, com a diferença e com o outro.

         Colírio para os olhos. Jesus esteve, três distintas vezes, pelo menos essas narradas nos Evangelhos, diante de mulheres, digamos, de reputação duvidosa. E deu três aulas distintas e marcantes de como se deve lidar com esse tesouro, para nós, homens, que são as mulheres. Três, digamos assim, prostitutas, para usar o termo pejorativo, carregado, carimbo na testa que, no refluxo semântico, é contra quem dele se utiliza. Jesus tomou partido diante de três mulheres rejeitadas porque, descaradamente, punham na vitrine a perversão que todo mundo reprime, esconde, dela se envergonha ou tem medo.

         Num momento de lazer, com os discípulos, escrevia, distraidamente, na areia. Quem sabe jogasse com os discípulos um joguinho matemático, passatempo que se perdeu em meio a tanta tradição. A turba chegou, fazendo alarido, gritando adúltera, prostituta, flagrante delito, apedreja. Jesus se conteve, nada falou. Não era com ele, ainda. Insistiam, violou a Lei de Moisés, apedreja, cumpra-se a lei, mas só para os enjeitados. Jesus nem era com ele. Até que um mais afoito dirigiu-se ao Mestre e perguntou: E tu, com isso?

         Não deveria. Jesus, voltando-se, perguntou: Eu, com isso? Apedrejem. Susto geral, até que Jesus terminasse a sentença: Mas só quem não tiver nenhum pecado. Assustaram-se, só porque Jesus ameaçou mostrar o nosso avesso. O avesso do avesso do avesso, já se dizia em Sampa. Todos fogem do seu avesso, a não ser que encontrem Jesus. Todos fugiram. Jesus e a pretensa prostituta no cara a cara. Mulher, cadê seus acusadores? Não sei, Senhor. Nem eu sou teu acusador. Agora, escolha a vida que você quer ter. Jesus, complementa o evangelista, não é acusador. Talvez porque seja o único que pode salvar, completamente, todos os que a Ele se achegam. Todos nós outros, incapazes de salvar até nós mesmos, somos acusadores, tentado amenizar nossas faltas pela suposta culpa dos outros.

           Diante de Jesus: alguém poderia supor e esperar, de Jesus, que ele tivesse doutrina, religião ou discuso moral para a mulher. Não é assim que o Livro mostra Jesus. Tenha colírio nos olhos. Partindo do argumento dos acusadores, Jesus perguntou onde estavam eles, com a força de seu argumento. A mulher não sabia deles e Jesus, medindo-se por eles, disse não ser e não querer ser acusador. Quando disse, recomendando, que ela fosse embora e não pecasse mais, é porque pecado, genericamente, é tudo o que é contra a vida. Colírio nos olhos. Recomendou, apenas, que a mulher aprendesse, de si mesma, a rejeitar o pecado, por si mesma e para os outros.

           Pode-se considerar o resultado dessa conversa. Uma turba que traz uma mulher em desespero, na tentativa de comprometer aquele filho de carpinteiro, Mestre, para seus discípulos, um visionário metido a rabi, para escribas e fariseus, e a reação dele ser desafiadora. Primeiro, assumiu o argumento deles e mandou apedrejar, sim, mas para quem não tivesse pecado igualando, desse modo, a todos. Então, após a covarde dispersão, interrogou, ironicamente, a mulher para, logo em seguida, assustá-la com a afirmação de que não tinha nada em que condená-la.

          Pode-se generalizar essa afirmação: Jesus não tem o que condenar em nenhuma pessoa, em nenhum vivente. Ele afirma nas Escrituras que veio buscar e salvar. No contato com a mulher, não aceitou o modo como a manipulavam. Não queriam, como alegado, honrar o cumprimento da Lei de Moisés, mas desabonar Jesus. Usaram a mulher. E não foi com a sinceridade de desejos do homem que relegaram a segundo plano, no alegado flagrante, deixando-o de lado, reforçando sua discriminação. Aqueles homens tinham total desprezo pela mulher, por Jesus, pela ética e pela Lei que alegavam preservar.

           Colírio nos olhos para enxergar o modo como Jesus ressalta, verdadeiramente, o direito a vida que deseja conceder a todos. Para enxergar, também, o modo como a Bíblia ensina que se deve tratar a mulher, ao mesmo tempo em que é emparedado, em sua incoerência, o grupo acusador maior. Geralmente, o grupo se auto protege, lançando-se contra a falta de plantão, eleita como bode expiatório e denúncia de ocasião, numa espécie de 'nuvem de fumaça', desviando a atenção de si mesmo.

          Jesus tem muita lições a ensinar. Ainda na sociedade de hoje, em que a mulher continua sendo alvo de violência gratuita e responsabilizada, como numa síndrome de Eva, por todo o pecado do mundo, Jesus dá a lição de que necessitamos, demonstrando que não há falta que justifique o grupo para que apedreje. Porque todos pecaram e pecam. No cara a cara com Jesus, ele revela a gravidade desse caso e promete salvação definitiva desse mal.
          

           

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