quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015


 É assim que Deus disse?

         Is it even so? Ou, no hebraico, af ki-'amar 'elohim: (Atenção, 'dois pontos', em hebraico, equivale ao nosso ponto de interrogação e, vamos verificar, interrogação, aqui, neste caso, torna-se o fundamento da argumentação). Para início de conversa, isso na suposição de encontrarmos, pela frente, leitor(es) ateu(s), o diálogo acima deu-se lá no Jardim do Éden, entre a mais sagaz serpente e Eva, a mãe de todos nós.
          Refiro-me aos amigos assim denominados não por exclusão, mas incluindo-os nessa temática, pelo menos, provisoriamente, a suposição seria de que, então, nem tanto Deus exista, nem tanto a Serpente também. Mas, no contexto da história narrada no Gênesis, mesmo tomando-as como personagens mitológicas, fica clara a provocação dela, da serpente, por meio da referida sentença, em relação ao que, anteriormente, a outra personagem, no caso Deus, havia prescrito ao casal primordial.
        A expressão-título deste texto corresponde, provocativa e ironicamente, a um questionamento sugerido pela serpente em relação ao que fora prescrito. Fica óbvio que havia uma rivalidade anterior, previamente instaurada, mesmo antes da conversa entre as duas, serpente e mulher, e a certeza de que a pergunta em forma de questionamento era uma provocação.
          Bem, acreditando ou não na historicidade desse fato, destaque-se que as duas personagens, Deus e a Serpente, rivalizavam entre si. Ou, expressando de uma outra forma, a serpente havia se tornado uma ancestral rival do Altíssimo e, portanto, sua intenção era jogar uma contra Outro, ou seja, se havia uma rivalidade anterior, a Serpente desejava transmiti-la, igual, a sua, oportunamente, protagonista, a mulher, a quem ela queria tornar antagonista do Altíssimo, da mesma forma que de si mesma a serpente era.
          Pois. Uma excelente definição ou proposta de uma raiz para toda e qualquer rivalidade nutrida por alguém disposto a recolher para si mesmo essa mágoa ancestral da Serpente contra o Altíssimo é colocar em dúvida todas ou quaisquer palavras do Altíssimo, exatamente assumindo como sua a questão, eivada de malícia, precipuamente compreendida nesse tom: e aí, é assim que Deus disse?
       Em nossa argumentação, partindo-se do ponto de que há malícia na pergunta da serpente, que sempre deseja colocar em dúvida a credibilidade ou pertinência das palavras do Altíssimo, assumir essa premissa seria, de um modo geral, sempre admitir que todas e quaisquer palavras do Altíssimo devam ser questionadas, colocadas em dúvida e, quem sabe, até mesmo, por opção, rejeitadas.
       Ora, não deixa esse de ser um princípio a adotar. Fica claro, portanto, que à serpente coube sugerir que palavras do Altíssimo podem, sim, ser colocadas em dúvida e não ser atendidas ou ouvidas ou levadas em consideração. Raiz de todos os males assumir essa regra, sempre questionar qualquer palavra do Altíssimo, jamais submetendo-se a ela, mesmo que seja de súbito, questionar sempre, e primeiro, antes de mais nada, sempre supondo que, partindo do Altíssimo haverá, sempre, uma segunda intenção, nem sempre e/ou imediatamente a nosso, da humanidade, favor.
       Primeiro, é supor se, quando e como Deus fala. Mais uma vez, aqui, supondo que Deus exista. Sim, porque se, porventura, existindo, admitir-se que não pode falar conosco, ser ouvido por nós, seria absoluta inutilidade. Para mim, cessava toda polêmica. Se existe mas não se pode fazer ouvir, então é como se não existisse. Portanto, deve existir, da mesma forma, uma maneira direta e fácil de se fazer ouvir, senão, da mesma forma, torna-se inútil Sua existência.
       Aqui, outro princípio, nessa história toda: Deus existe e é facílimo ouvir sua voz. Problemática esta afirmação, visto que muitas vozes há e, muitas vezes, de novo, falou-se em Seu nome (e ainda assim ocorre) sem que fosse Ele mesmo quem houvesse falado. Mais um problema: se é fácil que Deus fale, mais, ou tão fácil, ainda, é autenticar, é identificar Sua palavra como verdadeira, destacada entre todas as demais, falsas, a partir dessa constatação. Se há falha nisso, não está no emissor, Deus, mas no receptor, os homens, genericamente falando, homens e mulheres.
      Pronto. Porém, certamente, o maior problema está no modo como Deus escolheu falar com os homens, que é por meio de outros homens, pelo menos é assim que o mesmo livro que conta a história do Gênesis assim indica. Aliás, a própria narrativa do diálogo da ancestral serpente, inimiga do Altíssimo, com a mulher, é-nos transmitida por um mediador. Então, no tempo em que Deus falou mais diretamente com o homem/mulher, prescreveu uma atitude frontalmente questionada pela serpente, como vimos nesse diálogo entre ela e a mulher.
        Aliás, e portanto, em decorrência disso, antecipamos aqui, tornou-se, daí para diante, mais difícil ouvir o que Deus diz, aliás, em contrapartida, tornou-se, então, mais fácil supor que nem mesmo Ele exista e que, muito menos, fale qualquer coisa. Recorrente, queremos dizer que, por causa desse questionamento inicial, raiz de todos os males, tornou-se muito difícil supor que Deus realmente fale e, uma vez, constatada essa suposição, ponha-se em, ou melhor, sob questionamento o que Ele, o Altíssimo, disse (ou diz), assim sugeriu a serpente.
        Estamos diante de um dilema: a suposta verdade desse diálogo já previne as razões por que é plausível supor que tudo, o diálogo em si ou toda a história pregressa a ele, sejam uma fraude? Ficou claro? Falando de outra maneira, está na raiz desse diálogo colocada a dúvida de que Deus deva ser ouvido, ou que fale ou mesmo que exista. O autor sagrado, assim identificado, não quereria, porventura, precaver-se contra supor-se desacreditado, então, para tanto, colocar a culpa (de novo) na serpente, caso fosse posta em dúvida toda a sua narrativa?
        Então, esse "é assim que Deus disse" aplica-se à própria narrativa em si, como se constasse, dirigido ao leitor, ei, você que está lendo, acredita mesmo que foi assim? Supõe você, que lê esta narrativa, estar diante de palavras de Deus? Isso posto, chegamos a um termo. Ser posta em dúvida a questão de que, se Deus existe, só serve se for fácil ouvi-Lo. Mas, como está posto também que Ele resolveu falar aos homens/mulheres por meio de outros homens/mulheres, será isto verdadeiro?
         Pois a sentença "é assim que Deus disse" põe em dúvida tudo o que Deus, porventura, tenha dito, diz ou venha a dizer. Aliás, essa sentença põe em dúvida, até mesmo, a perícope onde se insere como narrativa. Enfim, põe em dúvida o Gênesis inteiro e todo o Livro, até seu derradeiro Apocalipse: "É assim que Deus disse?"...

Um comentário:

  1. Olá.
    Não existem dois pontos (geralmente, equivalentes a ponto final) nesta oração no hebraico. A ideia de interrogação vem da expressão "af ki". (Veja o Léxico Hebraico e Aramaico do AT, da Vida Nova, p.32)

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